“Se você tem um plano B, para antes. Vai viajar, passear na praia, andar na areia, fazer o que gosta.” Não são as palavras exatas, mas foi mais ou menos o que ouvi de uma paciente hoje. Sessenta e poucos anos, cabeça funcionando super bem, corpo já nem tanto assim. Uma história arrastada de uns poucos meses prostrada, diarreia com sangue e outras coisas, que na investigação acabou descobrindo que era um câncer e já tinha invadido alguns órgãos. A maior queixa dela, nesse momento, era a perda da autonomia... não estar capaz de fazer e resolver as próprias coisas e depender de outros até pras coisas mais básicas. A maior preocupação dela era com o marido, que provavelmente estaria sozinho nessa noite e, talvez, com alguma dificuldade, pois já tinha seus próprios problemas de saúde, limitações e dores. E era ela quem ajudava e fazia companhia pra ele. Ter pacientes conscientes, acordados e lúcidos internados em datas como natal e ano novo é sempre um pouco mais doloroso e desconfortável. Embora eu esteja razoavelmente acostumado a isso, pois há bastante tempo trabalho nesse sistema, ainda sinto cada feriado longe dos meus. Ainda sinto a distância, que só fez aumentar nos últimos quase dois anos. E esse ano, especificamente, eu queria estar em tantos lugares e com tanta gente, que ficou um pouco mais doloroso. E conversar com ela, nesse momento tenso, cheio de dúvidas e incertezas, quando ainda nem sabe qual a própria perspectiva de tempo e futuro, mexeu um bocado mais comigo. “Você precisa ser um pouco psicólogo, né”, ela disse num certo momento. Não, não preciso e nem posso, pois não sou formado e capacitado pra isso. Sou apenas um bom ouvinte (tá até no meu nome, não posso evitar) e, estudando a filosofia e as técnicas dos cuidados paliativos, pude aprimorar isso um pouco mais. Aprender a ouvir melhor e acolher, trazer conforto, validar a dignidade e a vida de quem precisa disso, por qualquer motivo que seja. E um plantão tranquilo, como o de hoje, às vezes é um pouco mais difícil, porque dá muito tempo pra pensar. E pensar, com bastante frequência, leva a gente pra lugares desconfortáveis. Acolher, ouvir, validar e incentivar o outro, são tarefas relativamente fáceis. Quando aprendemos a deixar o ego e o julgamento de lado, por um pouco que seja, nos tornamos uma folha em branco onde pode ser colocada qualquer história e, muitas e muitas vezes, tudo que o outro precisa é de uma folha em branco, falar em voz alta pra se ouvir e, assim, fazer as próprias reflexões e enxergar a si. Mas quando você, a folha em branco agora preenchida, volta pro seu lugar e observa tudo que foi colocado ali, faz a sua própria reflexão. Por quê? Como? Quando? Até quando? Eu tenho um plano B. E não é um plano ruim. E ainda não consigo entender completamente o que me impede de colocar em prática esse plano, fazer acontecer e enfim girar a roda da vida pra próxima etapa. Medo da liberdade? Da responsabilidade? Da exposição? Da instabilidade? Ou um pouco de cada, talvez. Ainda não tenho tudo isso muito claro, infelizmente, e nem sei dizer se algum dia terei. Existe algo tão ruim em mim que tenho medo que as pessoas vejam? Existe algo tão grandioso em mim que tenho medo de me tornar um alvo? Ou é pura e simplesmente negação da humanidade, de aceitar que sou tão grandioso quanto ruim? Eu não sei. Eu realmente não sei. Mas tá tudo estranho, desconfortável. Como se esse mundo estivesse se fechando e ficando apertado e, de repente (nem tão de repente assim, na verdade) eu já não estou mais cabendo aqui. Tem uma ansiedade e uma sensação de urgência queimando, a impressão de uma brasa que, a qualquer momento, pode virar um incêndio e queimar tudo ao redor. Pra hoje, um casulo. Decidi me fechar um pouco pro mundo por algumas horas, desligar, esvaziar. Pra amanhã, continuar o projeto de fim de ano: limpar a casa, organizar o lar e tirar tudo que já não me serve mais. Reciclar, ressignificar, ou simplesmente jogar fora mesmo. No meio desse processo, a expectativa é fazer o mesmo com alguns sentimentos, sensações, coragens e medos, tirar tudo que tá acumulado e abrir espaço pra coisas novas. Espero conseguir entrar no próximo ano com o mínimo de tralhas possível. Na casa, na cabeça, na alma e no coração. E pro ano que começa em breve, ter a coragem de dar um salto de fé. Dar o passo que venho ensaiando há tanto tempo: o primeiro.