E então ele afastou a cadeira, levantou-se e foi até a cama. Sobre ela, tocava um despertador, com uma melodia repetida e já ignorada há tanto tempo. Voltou e sentou-se à frente do computador novamente. Uma dor no peito, forte. Um começo de pneumonia, talvez, considerando aquela tosse estranha. Ou um começo de fim, não sabia dizer. Seus braços não pareciam seus e sua mente não parecia sua. O mundo todo, de repente, lhe era estranho, como se nunca pertencera àquele lugar. Não haviam cores e os perfumes cheiravam a poeira. Os sabores desapareceram. Lá dentro, uma única chama, um sentimento. Um restinho de cor. Dourado. Parecia ser a luz que mantinha seu coração batendo, um coração apertado, um coração que começava a esfriar. No relógio faltavam cinco minutos, sabe-se lá pra que hora em especial. Já não importava mais. Já não havia especial. Até mesmo os dedos que batiam o teclado pareciam pesados, como se feitos de puro chumbo, batiam maquinalmente seguindo o ritmo de uma mente em arritmia. Mas já não importava mais. Essa era a vida. E ela deveria seguir, sabe-se lá como.

"Eu sou uma aberração", leu ele. E sorriu, um sorriso com um leve toque de ironia. "E sou mesmo", pensou, com aquela dor estranha no peito. Incrível como ainda se reconhecia em todas aquelas palavras, fossem quais fossem. Incrível como ainda se via naqueles olhos, como ainda respirava aquele perfume. Bastava fechar os olhos e lá vinha aquele aroma de flores e frutas. Bastava reabri-los e lá estavam aqueles dois cômodos escuros e frios. Tão pequenos outrora, tão imensamente gigantescos e insuportáveis agora. O despertador toca outra vez, é a hora que se aproxima. Que hora, não se sabe dizer. O pensamento não pensa mais, é o corpo que assume o comando, deixando uma espécie de piloto automático conduzir-lhe a vida. Por fora, poucos vêem. "É o cansaço", diz ele, convincentemente. Um sorriso leve nos lábios, vazio, vestido à força naquele corpo que agora vive por conta própria, sem um comando. Um corpo que já não parece seu, uma vontade que já não lhe pertence mais. De olhos fechados, só o que sente são imaginações. Um cabelo a roçar-lhe o peito, mãos a acariciarem-lhe os ombros, lábios que lhe tocam o pescoço, o som cristalino de uma gargalhada, o perfume envolvente de um corpo.

Mas novembro vem, lavando os últimos maus espíritos do inverno. E ainda que ele se sinta como o próprio mau espírito, pede pra ser lavado. Pede pra ser renovado. Pede por surpresas boas, sejam elas quais forem. Sabe que virão, ainda que não veja perspectiva agora. Sabe que o mundo continua a girar. O despertador tocará novamente em alguns minutos, é a hora que se aproxima. Pouco a pouco, um dia ele tomará consciência de que a hora que chega é a hora de viver. De retomar a vida. Enquanto houver vida, há esperança, dizem alguns. Enquanto houver esperança, há aquela chama dourada, aquele último resquício de calor, aquela última vontade de fazer, aquele restinho de cor. Que venha novembro, lavando os maus espíritos e transformando-os em mensageiros da boa nova. Que venha o tempo que vier, trazendo o que trouxer. Porque, ainda que lá dentro, em ruínas, um viajante perdido procure o caminho de volta, lá fora ainda há um sorriso. Meio automático, meio intencional. Necessário. Uma promessa a ser cumprida, um último compromisso assumido. E aqueles dedos, pesados como chumbo, pouco a pouco começam a se movimentar com mais leveza, implorando, pedindo a qualquer entidade suprema existente, que se ainda há alguma esperança de cura nessas mãos, que se manifeste trazendo boas palavras e toques delicados.

Anjo

E eis que ela surgiu, em um vestido azul anil, longo e esvoaçante. Aquele caminhar volitante, leve porém resoluto, os quadris se movendo de um modo firme porém delicado. Seus olhos cor de madeira traziam uma expressão serena, com a profundidade de um oceano e a beleza de um entardecer. E quando se movimentava, era como se o ar desse passagem a cada graciosidade que seu corpo produzia. E então ele piscou e esfregou os olhos, como se quisesse ter certeza de estar acordado. E quando os abriu novamente, aquele breu fez com que tateasse ao redor até tocar o interruptor, e tudo que viu foi um teto branco levemente amarelado, sugerindo que despertara. E antes que pudesse duvidar, o canto do despertador trouxe-lhe a certeza do que era real e do que fora onírico. Levantou-se, banhou-se, vestiu-se, alimentou-se, encaminhou-se, trabalhou-se, alimentou-se novamente, trabalhou-se mais, voltou-se, banhou-se outra vez, vestiu-se de novo e deitou-se. Um dia comum. Mais um dia comum. Mas com aquela constância no pensamento, aquela imagem de sonho que fixara-se em sua mente e movimentara sua imaginação. E, a muito custo, finalmente adormeceu. E então ele a viu.

Estava sentada diante dele, sobre uma pedra. Olhou ao redor e viu-se numa clareira, rodeada de árvores frondosas e salpicada de pequenas flores coloridas que interagiam com a veste azul anil que ela usava. Ele a encarou, com medo de piscar. E observaram-se mutuamente, sabe-se lá por quanto tempo. E quando se tornou inevitável, ele piscou, e reabriu os olhos, temeroso. E eis que ela ainda estava lá. E então ele sentou, com um leve sorriso de alívio. E ela retribuiu o sorriso. E nesse momento, o sol brilhou mais forte, as flores coloriram mais intensamente, os pássaros cantaram com mais vigor, o vento soprou com mais carinho. Pelo menos, foi assim que ele sentiu aquele sorriso. “Quem é você?” perguntou ele, com uma coragem vinda sabe-se lá de onde. “Ninguém importante” respondeu ela. “Como, ninguém importante? Seus olhos brilham e o seu sorriso ilumina. Sua presença parece ser suficiente para que todas as cores ganhem vida e para que o mundo se anime! Como é possível que seja ninguém importante?! Diga-me seu nome, por favor!” E então ela perguntou o que ele achava do bosque. Se gostava das flores. Se a luminosidade o agradava. E o convidou a um passeio. E ele foi sem saber seu nome, e sem se importar com isso. Andaram e riram e conversaram e desfrutaram até chegarem à beira do lago, onde ela então se despediu. “Vou vê-la novamente?” questionou. “Quem sabe...” respondeu. E então ele viu aquele rosto angélico se aproximando e fechou os olhos para recebê-lo. Sentiu o doce contato daqueles lábios a tocarem-lhe a ponta do nariz, e abruiu os olhos a tempo de ver o sol nascendo através de sua janela. E assim, com uma certa dificuldade, levantou-se e seguiu-se em sua rotina, repetindo cada passo daquela noite em sua memória. E naquela noite, o sono veio com a fluidez de um córrego que desce a montanha. Ainda de olhos fechados, sentiu aquele calor agradável a banhar-lhe o corpo. Sorriu, e abriu os olhos, e lá estava ela com aquele sorriso estelar.

E assim se seguiram os dias. Ao nascer do sol, despertava e seguia sua rotina usual. Ao deitar-se, despertava do outro lado e vivia seu sonho. Anjo, era como ele a chamava. Não lhe importava o nome, desde que ela estivesse lá. Até a noite em que ela não esteve. Naquela noite, sonhou com aviões, aventuras, animais e muitas outras fantasias, mas ela não veio. E na noite seguinte também. E na outra. Na quarta noite, lá estava ela, aquele vestido azul anil e aquele sorriso ensolarado. Mas, por um momento, aquela visão não foi suficiente para iluminá-lo. Numa quase carranca, perguntou “Onde esteve? Por que não veio, por que se ausentou todo esse tempo?” Seu sorriso desmanchou-se numa serena seriedade enquanto respondia “Porque não pude. Ou porque não quis. Não importa, são motivos meus. Não sou propriedade sua, sou livre, vou e volto como bem entender. E se hoje estou aqui, é porque quero estar aqui.” E então ele fechou seu rosto em dúvida ao perguntar “Como? Isso é um sonho, um sonho meu. De que forma você pode ir e voltar como quiser se sou eu que estou a sonhar?” Então, esboçando um sorriso compreensivo como quem fala a uma criança, disse “Um sonho? Seu sonho? Ainda não entendeu, não é?...” “Mas se isso não é um sonho, então o que é?...” perguntou novamente. E antes que terminasse a frase, sentiu sua mão a tocar-lhe o rosto, um toque quente, suave, real! Pôs sua mão sobre a dela e sentiu-a ainda mais delicada, ainda mais real... E então, num impulso de vida e desejo, levou aquela mão àquele rosto semidivino e envolveu-a pela cintura e trouxe-a para aquele tão esperado beijo. E pouco a pouco sentiu aquele contato esvair-se até ser despertado pelo sol que aquecia seus pés. Sentindo ainda a boca quente e seu espírito em êxtase, trouxe a mão ao rosto e sentiu aquele perfume de flores e frutas e então compreendeu.

E então passou outra noite a sonhar coisas irreais. E durante o dia, revivia em sua memória cada momento experimentado naquele outro mundo. E outra noite vazia se seguiu àquela. E mais outra. E outras mais. Até que novamente deitou-se e sentiu aquele calor familiar. E respirou aquele perfume esperado. “Pensei que não a veria mais” disse, de olhos ainda fechados. “E não veria”, disse ela, “mas foi mais forte que eu...”, enquanto acariciava-lhe os cabelos. E quando enfim abriu os olhos, viu aquele queixo desenhado pelos anjos e aqueles olhos de madeira a observá-los de cima, com uma ternura que lhe era desconhecida até então. Fechou novamente os olhos, a desfrutar, enquanto indagava “Quando irei vê-la de verdade?” “Mas isso, aqui, agora, é verdade!” respondeu ela. “Sim, eu sei, mas... bem... quero dizer, quando irei vê-la acordado?” replicou ele. “Mas você está acordado”, treplicou ela, e antes que ele formulasse nova frase, continuou “o que ainda não entendeu, ou não aceitou, é que algo em você deve adormecer para que outra parte desperte. De lá para cá, de cá para lá, não importa. Algo adormece para que outro desperte.” E ele meditou aquelas palavras no silêncio daquele afago. “Mas... onde é cá?” perguntou enfim. “Também não sei”, respondeu ela, “só sei que cá é onde posso encontrá-lo, como se fosse um mundo só nosso...” E assim viveram novos dias, naquele sentimento novo e crescente e diferente e... fantástico! Até que outro despertar aconteceu...

Ele abriu os olhos e sentiu um calor diferente. Familiar, mais familiar que outros calores. Olhou ao seu redor e parecia reconhecer aquela paisagem. Parecia... seu mundo. As cores eram mais vivas e as sensações mais intensas. As vibrações mais radiantes e os perfumes mais marcantes. “Ah, sim, agora faz sentido...” ouviu, no som cristalino daquela voz tão desejada. Virou-se e viu-a, em um vestido azul ciano mais leve e mais curto, fresco como se espera que seja naquele mundo de calor. “Mas... o que você está fazendo aqui?” perguntou, num misto de surpresa e alegria. “Esse lugar, esse espaço, esse mundo, onde estamos?” foi a vez dela perguntar. “Aqui é onde vivo, onde existo. Aqui é onde aconteço. Parece diferente, de alguma forma que não consigo explicar. Como se fosse... mais real que a minha realidade, talvez... Mas... como você chegou até aqui?” “Não sei. Assim como não sei como criamos aquele mundo só nosso. Talvez sua vontade de me trazer até aqui. Talvez minha vontade de estar ao seu lado. Talvez todos os fatores juntos. Não sei. Mas sei que estou aqui e gostaria de aproveitar ao máximo cada momento...!” E sorriu aquele sorriso capaz de iluminar uma vida. E ele sorriu de volta aquele sorriso digno de quem recebe uma vida. E levou-a a conhecer seu mundo. Mostrou-lhe seus motivos e suas alegrias, suas tristezas e seus pensamentos, seus sonhos e suas verdades. E ao término daquele passeio, perguntou-lhe “E quando conhecerei seu mundo?...” “Não sei”, respondeu-lhe, francamente, “honestamente, não sei. Um dia, talvez. Nunca, quem sabe. Não sei se estou pronta para recebê-lo lá. Não sei se algum dia estarei...” E apesar daquela resposta incerta, gostou daquela nova possibilidade. E então, suas noites passaram a alternar-se entre um mundo e outro mundo. E algumas noites vazias também, que passou a chamar de noites essenciais, pois renovavam-lhe a saudade e a vontade e o desejo e a certeza. E assim seguiu, sabe-se lá por quanto tempo, uma medida que não existia naquele mundo onde se encontravam. Até o dia em que despertou, surpreso novamente. Olhou ao redor e viu um mundo de cores extravagantes e perfumes diferentes, levemente embaçado e nebuloso. Tinha dificuldade em distinguir formas, esfregava os olhos e caminhava com passos cambaleantes, até que viu. Até que a viu. Vestida em um macacão azul celeste sobre uma camiseta azul índigo, confortável embora confusa, parecia não entender. E então ele sorriu, pela primeira vez um sorriso capaz de iluminar um dia. E então tudo ficou claro, enquanto ele caminhava resoluto em direção à dona daquele universo que até então lhe era desconhecido...

No dia em que os anjos desceram à terra

Aconteceu no dia em que os anjos desceram à terra. Eu me lembro como se fosse ontem. Eram apenas algumas centenas deles. Poucos, se comparados aos que existem hoje. Ainda estavam no começo de sua criação e vinham conhecer o mundo onde atuariam. Tudo ainda era novo, um tanto quanto rústico, pura virgindade de um solo que ainda seria cultivado. E foi ali que aquela legião angélica aportou, em seus deslumbrantes mantos esvoaçantes e suas alvas asas majestosas. Seus olhos brilhavam, aguçados pela curiosidade daquilo que os esperava, mas não possuíam auréolas, ainda, visto que não havia motivos para merecê-las. E foi assim que tiveram o primeiro contato.

Era uma raça rústica, tão virgem quanto o chão que pisava. Comunicavam-se aos trancos e barrancos, com grunhidos guturais quase incompreensíveis e uma linguagem corporal baseada na violência. Eram poucos, menos ainda que os anjos, desprovidos de asas e graciosidade. Os alados riam-se da infância daquela raça ignorante, compreendendo suas intenções ainda primitivas e meramente sobrevivenciais. Até que o primeiro deles, tomando coragem, decidiu-se por se aproximar de um dos outros. E observou que ele parecia mudar ante sua aproximação. Serenava-se, como se pudesse senti-lo, apesar de não vê-lo. E, inspirado por aquela serenidade, soprou um carinho e viu aquela sobrevivência demonstrar um toque de convivência quando aquela linguagem violenta delicadamente deu lugar a um toque humano. Inesperadamente, ou talvez nem tão inesperado assim, a reação de outro dos outros foi um choque explosivo que afastou o primeiro e repeliu a entidade angélica, dando lugar novamente à natureza daqueles primitivos. Rápida e instintivamente, um segundo anjo concentrou-se no segundo quasihumano que reagiu com a serenidade do primeiro, interrompendo um gesto quase fatal, como se enfim compreendese o quão vil seria. E a legião angélica então assombrou-se com seu próprio poder.

E um a um, experimentaram aquela atitude. Por aproximação ou por pensamento, afinaram-se com aqueles irmãos ignorantes. E eles, também novos no universo, começaram a compreender e a enxergar a complexidade daquela raça ainda em evolução. Passaram a enxergar vontades e aspirações que não viam como meros observadores. E aos poucos, aqui e ali, alinharam-se com esse desejo ou com aquela inspiração, e um a um, sintonizaram-se com seus protegidos. Exceto aquele primeiro anjo, que junto a um pequeno grupo, afinava-se e compartilhava de todas aquelas aspirações. Desejavam todos os desejos e inspiravam-se com todas as vontades. E então, quando os anjos enfim compreenderam o intuito de sua criação, prepararam-se para retornar e se reunir com o criador para que pudessem caminhar com seu trabalho de cocriadores. Todos, exceto aquele primeiro anjo e aquele pequeno grupo. Ansiavam o trabalho, mas desejavam a proximidade. Sem saber o que fazer, ajoelharam-se e confiaram na providência daquele que os havia enviado.

E assim, enquanto se encaminhava para a presença do criador, Miguel, o mais famoso dos anjos, voltou-se para observar seus pequenos irmãos uma última vez, e o que viu foi aquela pequena leigão, toda composta de anjos mulheres, ajoelhada, confiando. Aos poucos, suas asas iam-se desmanchando, pena a pena, e seus corpos pareciam menos radiantes e mais densos. E aquela raça que ainda engatinhava começava a tomar consciência daquelas presenças que se materializavam bem à sua frente. E assim nasceram as primeiras mulheres humanas, cocriadoras de origem angelical prontas a suprimir o quasi que essa raça recém-nascida levava. E, embora aquela legião houvesse renunciado a toda a leveza que possuía, Miguel não temia, pois o brilho nos olhos e o amor no toque revelavam que a humanidade jamais poderia apagar a angelitude daquelas sublimes entidades.