Moscou

Estou deitado, olhos fechados, tentando esvaziar minha cabeça, quando ouço a voz dela.
– Há quanto tempo, não?
Um discreto sorriso se abriu em meus lábios, antes de meus olhos. Olhei em sua direção. Mesmo na penumbra em que me encontrava, podia vê-la claramente. Era quase como se irradiasse a própria luz...exatamente como me lembrava. Admirei-a por alguns instantes, os olhos verdes, cabelos escuros estrategicamente despenteados, pele clara com algumas sardas na fronte. Continuava linda.
– Você veio – eu disse – como tinha prometido...
Ela sorriu, e seu rosto se acendeu ainda mais.
– Sempre mantenho minha palavra...
Sorri. A presença dela me fazia mais leve...
– Você não mudou nada desde a última vez que te vi. Continua deslumbrante.
Ela piscou.
– Por outro lado, eu quase não te reconheci. O tempo foi cruel com você, não?
Eu ri...ou teria rido, se o ar não me faltasse...
– O tempo, o mundo, a vida...mas...acho que mereci, né?...
Desviei o olhar dela e olhei para mim... A manta com o brasão da instituição cobria meu corpo cheio de cicatrizes, os braços invadidos por agulhas, as pernas flácidas e inertes, a pele marcada de hematomas. Fechei os olhos novamente e reclinei minha cabeça no travesseiro.
– Ninguém merece sofrer...mas toda luta envolve dor, infelizmente.
Ouvi-la dizer aquilo me fez viajar uma vida inteira atrás.
– Moscou, 1921. – eu disse – Lembro como se fosse ontem, a primeira vez que a vi.
Mesmo de olhos fechados, pude sentir seu sorriso se alargando. Então, ela puxou minha mão para fora da coberta, envolvendo-a entre suas próprias mãos, quentes e acolhedoras.
– Eu também...e de todos os anos depois deste...
Uma lágrima brotou em meus olhos. Senti frio, mesmo com o calor de sua presença. Olhei para ela novamente. Seu rosto tinha aquela expressão suave e acolhedora dos nossos momentos mais íntimos.
– Moscou, 1927. – ela ficou em silêncio – Nosso último encontro...
Ainda silêncio. O olhar, carregado de benevolência e compreensão. Desviei meus olhos.
– Se você está aqui, então quer dizer...
– Sim
– E você veio me levar...
– Vim te acompanhar. Assim como você sempre me acompanhou. Até o fim.
Um nó se formou em minha garganta.
– Não era pra ter sido assim...
– Você não sabe – ela disse.
– Não importa o que eu sei...não era. Aquele tiro era meu. Eu deveria ter morrido naquele dia, não você... Era sua luta, sua ideologia, sua visão...
– E você levou adiante, tão bem quanto eu teria feito... Talvez até melhor... Exatamente como prometeu.
Silêncio. O nó em minha garganta me sufocava, e eu chorava silenciosamente. Com dificuldade, quebrei o silêncio.
– Não...você teria feito muito mais. Teria visto muito mais, crescido muito mais...
– Ou não...nunca saberemos. Mas o que sabemos é que a loucura começava a nascer em mim... Quem sabe até onde teria ido? Quem sabe até onde iria a deturpação e desvirtuação?
– Isso não aconteceria...eu estava lá pra te ajudar e te segurar, se fosse necessário.
– Você estava lá pra herdar minha visão e carregar minha luta. Exatamente como prometeu, e cumpriu.
Olhei novamente para ela. Seus olhos eram ainda mais belos do que me lembrava... Deixei seu olhar me invadir, e senti minha alma acalentada.
– E agora? – perguntei.
– Agora?... Chega. Acabou. Outros assumirão nossos papeis.
– ...vai doer?...
– Muito...
Engasguei.
– Mas eu estou aqui...

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Sinto saudade da trema. E dos acentos nos ditongos abertos...

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