A difícil lição do Amor

Eram ele e ela. Há muito tempo que iam e vinham nesse amor conturbado, doentio, possessivo. Muitas vidas tentaram e muitas vidas falharam. Até que resolveram tentar diferente, um amor à distância dessa vez. Um amor impossível que os obrigaria a exercitar o desapego. Mais que isso, esse amor libertador abriria o caminho para que seus filhos concretizassem a união de dois inimigos.


E assim nasceram, ele Romeu, ela Julieta. Deveriam amar-se à distância, encontrando-se em sonhos, admirando-se na vigília. Cultivados nesse amor impossível, pavimentariam o caminho para que seus descendentes superassem as barreiras impostas por gerações de ódio. Era assim que deveria ser. Era assim que teria sido, não tivessem caído em tentação novamente, cedendo às suas impulsividades da imperfeição. Cegos nesse doentio amor, construíram a própria ruína, encerrando prematuramente essa nova oportunidade, cada qual algoz de si mesmo. Ele, pelo sabor amargo do veneno. Ela, pela dor lancinante do punhal. E assim atingem o outro lado. Semi-inconscientes ainda, sem entender o que lhes passa e ainda alheios à magnitude do crime cometido.

Ele, suicida e assassino, é assediado pelas suas vítimas, torturado por almas amarguradas que lhe atormentam a consciência e lhe sugam a energia vital ainda presente em suas ligações fluídicas, rotas, sangrentas. Sofre ainda com a queimação em suas vísceras, o ardor do veneno que lhe corrói as entranhas. Ouve uma súplica, uma voz que lhe evoca a presença, distante, angustiada, mas não lhe identifica a presença, incapaz de localizá-la. E chama seu nome, implorando seu toque, clamando por socorro.

Ela, imprudente e suicida, sofre a tormenta da própria consciência. Sente, ainda, os efeitos do falso veneno, mãos e pés, braços e pernas dormentes, vertigens, prestes a perder a consciência a qualquer momento. O que lhe mantém a vigília é aquela dor lancinante no peito, a mesma lâmina fincada em seu coração a lhe dilacerar toda a esperança. Chama seu nome, espera seu socorro, enquanto ouve uma voz que parece a dele chamando-a também, suplicante. Mas ao seu redor, nada vê além de outras damas caídas, dormentes ou gementes, algumas sangram, outras sequer parecem viver.

Mas todo sofrimento tem cura e, ela primeiro, toma ciência do erro cometido e clama por misericórdia. Em sua sonolência, parece sentir bandagens envolvendo seu corpo, antes de ser elevada e acomodada em algo que lhe parece uma carruagem. Sonhos turbulentos agitam seu sono, um baile, um rosto enfumaçado, imagens embaçadas que vêm e vão. Quando finalmente desperta, está em uma maca e, ao seu redor, muitas outras similares parecem conter outras inconsciências. Levanta-se e dói-lhe o peito. Por baixo de uma camisola que não se lembra de ter vestido, sente bandagens recém-colocadas sobre uma dor funda e antiga. Um rosto desconhecido se aproxima "Bem vinda! Que bom que despertou. Há dias estamos aguardando." e lhe oferece um copo d'água. Só então percebe o tamanho de sua sede e sorve toda aquela água em poucos goles, devolvendo o copo e suplicando mais com o olhar. Não sabe onde está, não sabe o que se passa nem o que se passou. Sente-se confusa, com vagas lembranças daqueles sonhos, incapaz de discernir o real do onírico. "Não se preocupe - responde-lhe o rosto desconhecido, como se ouvisse suas súplicas em pensamento -, você está entre amigos. Meu nome é Clara e estive cuidando de você durante os dias em que esteve dormindo. Tome mais um gole de água. Consegue se sentar? Ótimo! Agora que acordou, não precisa mais ficar aqui. Vou levá-la até um quarto, onde poderá ficar mais à vontade." e, a um sinal seu, outra colaboradora sorridente aproximou-se, trazendo uma cadeira com rodas. Ambas auxiliaram-na a se transferir e, em seguida, Clara a conduziu até um quarto, pequeno mas aconchegante, com um catre pequeno coberto por lençol alvo e uma poltrona, um jarro de água e uma ampla janela com vista para imenso jardim florido.

Os dias passam naquele pequeno cômodo. Reaprende a falar com as orações executadas na companhia da dedicada Clara. Seu corpo se fortalece, já não necessita de auxílio para dirigir-se à poltrona e, sempre acompanhada, as excursões ao jardim lhe revigoram o ânimo. Até mesmo a dor parece diminuir diante de tamanho zelo e beleza. Só o que ainda lhe atormenta são as lembranças. A ausência delas, na verdade. Não se recorda do próprio nome, não sabe onde está nem de onde vem. "O esquecimento, às vezes, é uma benção!" diz-lhe Clara, ocasionalmente. Certo dia, Clara adentra o quarto acompanhada de respeitável senhor, com expressão séria porém carinhosa. Clarêncio, após apresentação adequada, identifica-se como médico, discute aquela ferida em seu peito, que ainda lhe dificulta a movimentação, e diz que agora se inicia nova fase de tratamento para a cura daquele mal. Aliviada, recebe de suas mãos um cálice com líquido rosado, de sabor agradável, e antes que termine de agradecer, já está profundamente adormecida.

Ele, por sua vez, demorou mais. Luta contra a corrosão em seu interior e confronta suas vítimas, agora algozes, à procura de seu amor perdido. Cego de ódio, dor e paixão, não vê à sua volta as presenças angélicas que chamam seu nome com promessas de alívio e recuperação. Segue por dias incontáveis naquela condição, até que finalmente, esgotado há muito, cansado como nunca antes, cai de joelhos e chora, copiosamente. Arrepende-se e clama por perdão, finalmente tornando-se capaz de receber o auxílio oferecido. Não vê, mas sente, e aquele toque em sua fronte parece renovar-lhe a esperança, acalmar-lhe os pensamentos, aliviar-lhe as dores. Adormece, profundamente, totalmente inconsciente.

Adormecidos, ambos são trazidos de volta ao mundo, sem saber quantos séculos terrenos haviam se passado. Seus amigos, que há tantas gerações intercedem pelo crescimento daquelas almas sofridas, preparam-lhes nova oportunidade e agora trabalham, incansavelmente, no preparo daquela que seria a redenção dos amantes. Levados para longe daquele terreno que lhes era familiar, são conduzidos a ambiente amigo porém renovado, preparado por seus irmãos para recebê-los. Duas mães, duas gestações.

Ele nasce primeiro e chora, convulsivamente, um choro que não cessa com o passar dos dias. "Uma mal formação congênita do aparelho gastrintestinal" diz o médico à mãe, após várias tentativas de descobrir o que se passa com aquela criança que parecia tão saudável. Internado e submetido a cirurgia, acomodado naquela unidade pediátrica humanizada, com a mãe ao lado incansavelmente, alimentando-o e acalentando-o. Ela nasce depois, uma gravidez complicada e sofrida também para a mãe, infelizmente falecida no parto. O pai, ressentido em sua imperfeição, não entende a missão assumida pela companheira e é incapaz de amar aquela criança a quem atribui o assassínio de sua amada. Os médicos e enfermeiras lamentam pela criança e especulam sobre seu futuro, até que um deles, após investigar a causa daquela estranha fraqueza de uma criança saudável, encontra aquela anomalia cardíaca tão rara. Mais lamentos, cobrindo um sorriso disfarçado naquela instituição de ensino, diante da possibilidade do tratamento experimental. É admitida naquela unidade pediátrica humanizada, tratada, abandonada e sozinha. E a mãe dele, uma daquelas que há tanto tempo constróem a redenção daquelas almas, assume a outra parte de seu compromisso e divide seu alimento sagrado entre um e outro.

E assim, no caminho da dor e do sofrimento, encontrarão a redenção. Uma existência breve, rápida e difícil. Viverão tempo suficiente para se conhecer, mas não para compreender o que é aquela sensação de troca de olhares. Além do tabu da infância, serão criados como irmãos e se amarão como tal, entre as grades de dois leitos. No entanto, ao retomarem suas consciências, suas almas compreenderiam a verdadeira lição, de tão difícil aprendizado. Levariam para sempre aquele verdadeiro amor, fraterno e libertador, e tendo ele por base, construíriam grandes obras e executariam grandes feitos.

Sozinho

Ele aparentava cerca de 70 anos de idade. Morava naquele asilo que fica logo ali, dobrando a esquina. Tinha sempre um sorriso no rosto e uma expressão leve e acolhedora. Diferente dos outros, trazidos por filhos, netos, sobrinhos, às vezes até por irmãos, chegara até ali sozinho. Viera de táxi, carregando as próprias malas. Ou melhor, a própria mala, já que era um volume só, e tinha quase mais livros que roupas. Não se sabia qual sua fonte de renda, mas pagava ele mesmo a mensalidade da instituição, mês a mês, sem atraso. E ainda recebia, ocasionalmente, algumas compras feitas pela internet. No seu cadastro, apenas um contato de emergência, um sobrinho em outra cidade, um tanto quanto longe.


E aquele era um dia um pouco atípico, que acontecia ocasionalmente, mas infelizmente não era rotina. Era uma terça-feira ensolarada, com escassas nuvens brancas, e um grupo de jovens escolares visitava a instituição, de acordo com a filosofia cristã de caridade daquela renomada escola. Não era a primeira vez que observava aqueles jovens. Ano a ano, os grupos se alteravam e surgiam novos rostos que pareciam cada vez mais jovens, mais inexperientes e, às vezes, mais assustados. Era interessante observar um certo padrão que se repetia: a primeira visita era sempre meio devagar, tímida. As crianças não sabiam o que fazer nem como abordar os residentes e, em geral, eram eles que começavam o trabalho. Os mais lúcidos, num primeiro momento, se aproximavam devagar e acolhiam os pequenos, com pequenas conversas e breves histórias. Quando os jovens se sentiam mais à vontade, os idosos então os levavam a passear, apresentavam os menos lúcidos e alongavam as histórias. Lá pela terceira ou quarta visita, o grupo já estava familiarizado e os escolares já chegavam procurando seus favoritos, aqueles com quem tinham mais intimidade, e traziam atividades diferentes, como pequenas apresentações de teatro, uma refeição diferenciada, brincadeiras adaptadas às limitações dos velhinhos.

Há quatro anos lá, era o quarto grupo que observava. Tinha o hábito de observar, de ficar meio distante, apenas assistindo e acompanhando. Participava de algumas atividades, de outras escapava à francesa. Algumas vezes fora abordado, mas a conversa nunca ia além de algumas amenidades do dia-a-dia ou pequenas incursões no passado, sempre desinteressadas, como quem oferece um pequeno agrado a um necessitado, geralmente falando pelos cotovelos. Ficava meio incomodado com esse tipo de caridade, por isso dava preferência às crianças que ouviam mais do que falavam, ainda que ele mesmo não fosse um grande falador. Gostava mesmo era de assistir o efeito daquelas pequenas presenças no espírito do asilo. Seus companheiros e companheiras continuavam a comentar por dias a fio aquela breve incursão. Era pena que esses dias se esgotavam antes da próxima visita.

Certa feita, sentado ao lado de uma senhora que, embora já apresentasse raros episódios de desorientação, mantinha-se bastante lúcida, observou uma jovem que se aproximava e, num ato de gentileza, afastou-se um pouco para a esquerda, convidando-a a sentar-se entre os dois. A moça sentou-se e começou puxando assunto com a senhora. Conversaram sobre presente e passado. Mais sobre passado que sobre presente. E aquele senhor gostava da atenção daquela menina. Ouvia com um interesse verdadeiro e seus comentários e exclamações eram sempre pertinentes e permitiam que a velhinha aprofundasse sua conversa e falasse até esgotar suas palavras. Os olhos daquela senhora brilhavam de satisfação, um brilho colorido em Technicolor, enquanto ela falava sobre sua vida. E mesmo no presente, seu discurso exalava novela de época ao comentar, discretamente, entre risinhos, seu namorico com respeitável senhor residente daquela instituição. E foi nesse gancho que a pequena moçoila se pendurou para trazê-lo ao assunto, logo após a chegada de um rapaz que engatou conversa com a senhora, perguntando-lhe "E o senhor, tão bem apessoado e sempre bem vestido, não namora ninguém aqui dentro?" com um sorriso que oscilava entre a inocência da pergunta e a malícia da intenção. "Vixe, faz tanto tempo que não namoro ninguém que acho que nem sei mais como se faz isso", foi a resposta oferecida, coroada com uma sonora gargalhada de quem desvia um ataque. "Ah, sério mesmo? Se o senhor quiser, então, eu posso brincar de ser sua namorada pro senhor relembrar como é!" foi a réplica da menina, seguida de um risinho brincalhão de neta. Fingindo seriedade, o senhor desconversou "Ê menina, pára com isso que eu tenho idade pra ser seu pai... três vezes!" E a jovem, com a mesma bondade que demonstrara na conversa com a velhinha, perguntou "O senhor é viúvo?" querendo dar continuidade à conversa. "Pra ser viúvo, teria que ter sido casado, menina, e essa felicidade eu não tive na minha vida." "Sério mesmo? Mas por que não? O senhor é tão bonito, deve ter sido um arrasa coração na sua juventude." Rindo, uma risada franca e divertida, ele então responde "Nem tanto assim... Essa beleza de agora é porque sou velho e minhas rugas escondem muita coisa. Era até que bonito, sim, mas não tanto quanto você imagina, e não arrasei muitos corações. Talvez tenha sido até mais arrasado que arrasador." Inocentemente, a pequena pergunta "Então foi o senhor que nunca quis casar?"

E então ele se ajeita no banco, arruma o óculos no nariz e diz "Olha, querer eu quis, mais de uma vez e com mais de uma moça. E, cada vez por um motivo, ou talvez todas as vezes pelo mesmo motivo, não sei dizer bem, não deu certo com nenhuma delas. Sequer cheguei a noivar." Surpresa, a menina exclama "Que pena!" com uma sincera expressão de compaixão em seu rosto. Num gesto como se dispersasse fumaça, ele continua "Pena por que? Só porque não casei? Isso não quer dizer que fui infeliz. Acho que meu último namoro terminou terminou antes que completasse quarenta anos e, desde então, estou sozinho. Ou melhor, solteiro. Sozinho de verdade eu nunca estive. Mantive minha família por perto, amei meus sobrinhos e sobrinhas como se fosse filhos. Minha casa vivia cheia de amigos e minha profissão me obrigava a estar sempre rodeado de pessoas. Mesmo agora, quando meus amigos e parentes começaram a ficar mais escassos, preferi vir morar aqui, ao invés de ficar sozinho em casa." "Mas mesmo assim, o senhor não se sentia solitário? Não sentia falta de uma companheira?" pergunta novamente a moça, ainda mais surpresa e interessada. "Sentia, sim, várias vezes. Mas ao longo dos anos aprendi a viver sozinho. O casamento é uma coisa muito difícil, mas talvez seja mais fácil que viver sozinho, porque a gente sempre tem alguém pra dividir a vida, tanto as coisas boas quanto as ruins. Até quando ele não dá certo e termina em divórcio, ainda é mais fácil que a solteirice, porque você tem alguém pra culpar e xingar, pra aliviar as dores do próprio coração. Quem se casa, sempre tem alguém que depende dela e alguém pra depender. Quem é sozinho não tem isso, fica com tudo que é bom pra si mesmo, mas também tem que agüentar tudo que é ruim e não tem em quem pôr a culpa. Hoje, eu acho que nem todo mundo nasce pra casar. Tem gente que talvez nasça justamente pra aprender a viver sozinho, pra construir a própria pessoa, pra aprender a não depender dos outros. Isso é quase a mesma coisa que carregar uma montanha sozinho. Não é impossível, mas é muito difícil. Tudo na vida é difícil, mas aprendi que cada um tem uma dificuldade pra enfrentar." E antes que a moça pudesse continuar, a conversa terminou, quando aquele rapaz se levantou, chamando pra brincadeira que iria começar.

Mais comum do que parece

         Era uma vez um jovem normal. Desses normais, mesmo, até demais. Especificamente, um adulto jovem, desses que aumentam a estatística do desemprego e que pagam mais pelo seguro do carro. Mas, pelo menos nesse ponto, ele não tinha do que reclamar, trabalhava. E não tinha carro. Era um pós-adolescente padrão. Saíra de casa há alguns anos, a fim de estudar. Mudara-se de uma cidade pequena pra outra maior e, após muitas sortes e oportunidades de pessoas comuns, como ele, conseguira se manter por lá, trabalhando logo após a formatura. E lá estava já há alguns anos, firme e forte. Tanto quanto lhe era possível. Seus chefes o consideravam competente, seus colegas o estimavam e seus clientes eram cativos. Acordava todo dia logo cedo, um banho e um café rápido, vestido e seguia. Uma breve caminhada até o ponto e, de transporte coletivo, atingia seu destino. A responsabilidade ambiental camuflava o desejo de adquirir um veículo próprio frustrado pelas finanças. Suas contas eram todas pagas e nunca passara fome, mas sabia não ter condições de sustentar as próprias rodas. Retornava no final da tarde. Ocasionalmente, no começo da noite. Em raros dias, chegava em casa depois do telejornal. E assim, vivia um dia após o outro. Comumente, ordinariamente, sem grandes emoções.

         A maior emoção de sua vida era desconhecida da maioria das pessoas. De todas as pessoas, na verdade, exceto do próprio jovem. Ninguém sabia de sua imaginação fértil e inquieta, ininterrupta. Vivia duas vidas, a ordinária, que lhe alimentava o corpo, e a extraordinária, que lhe alimentava o espírito. Imaginava-se imbatível, irresistível, incomparável, em seu mundo onírico. Ninguém conhecia o jovem que construíra em sua mente, completamente diverso daquele que se manifestava no mundo real. E era essa imaginação fértil que lhe motivava o dia-a-dia. Cada hora que passava acordado era vivida concomitantemente nos dois mundos. Seus olhos brilhavam na fantasia enquanto suas mãos trabalhavam nos papéis.
         E era um dia comum. Pouco comum, na verdade. Era um daqueles raros dias que chegaria em casa após o telejornal. Ruas quase desertas, mesmo aquela avenida tão movimentada. E foi durante a travessia, após olhar para os dois lados da rua e seguir olhando em frente, que subitamente tivera vontade de olhar para cima. E olhou, e parou quando viu aquele risco de luz percorrendo o céu enegrecido. Desejou, rapidamente, que aquela estrela cadente tornasse sua vida inversa ao que era, o sonho na realidade e a realidade no sonho. E antes que terminasse aquele desejo ensaiado, viu outro risco. E outro. E outro. E outro. E dezenas deles. "Uma chuva de meteoros - pensou - que tolice a minha." E antes que completasse mais esse pensamento, um silvo, um assobio intenso, uma luz forte e um baque vindo pela esquerda. Quando abriu novamente os olhos, sentia o asfalto frio em contato com suas mãos, sua cabeça latejando intensamente e algo molhado em sua orelha. Levou a mão até lá, trazendo-a colorida de vermelho diante dos olhos. Sentou-se e olhou em volta. Não muito longe, uma pequena pedra, pouco maior que uma bola de tênis, fumegante. Ou não. "Coisa de vândalo - pensou - e ainda estou tendo alucinações." Pegou sua mochila, levantou-se e seguiu adiante, feliz pela rua deserta, livre de testemunhas que pudessem vir a rir de sua sorte. Em casa, após lavar adequadamente sua ferida, examinava-a diante do espelho, satisfeito pelo conhecimento médico que adquirira durante muitas horas de dedicação àquela produção televisiva estrangeira. "Não é tão grande assim, e também não estou com nenhum sintoma de concussão", declarava para o espelho. Um comprimido que amenizasse essa dor, dispensou o curativo e dormiu, cansado.
         E acordou. Sem dor. Sentindo-se leve como há muito não se sentia. Como nunca se sentira, na verdade. Tão leve que não percebeu que não havia ferida enquanto lavava a cabeça. Já vestido, dispensou o desjejum, não sentia fome. "Vou comer na rua hoje", planejou, e saiu mais cedo que o normal. Virou uma esquina antes, quis fazer um caminho diferente. E escolheu outra padaria. Satisfeito, diante do caixa, ouviu "Fica quieto e me dá o dinheiro do caixa" e, num ato reflexo e impensado, virou-se na direção da voz. Estranhou a lentidão com que o meliante se movia. Aliás, tudo parecia meio devagar. Teve tempo de tomar a arma da mão do indivíduo, dar-lhe uma cotovelada no queixo com o outro braço e, quando piscou novamente, viu a operadora de caixa ainda com a gaveta entreaberta, a balconista levando a mão à boca num gesto de espanto e o assaltante estatelado no chão, atônito, incapaz de compreender o que lhe acontecera. E quando este, rapidamente, levantou-se e pôs-se a correr em direção à porta, ele pensou em detê-lo e, antes que pudesse concluir a imagem mental, encontrava-se na porta do estabelecimento e esticou o braço, como se quisesse pedir que parasse, e o agressor se chocou contra sua mão e voltou ao chão, enquanto o meganha, chamado por um cliente que não chegara a adentrar o recinto, se anunciava e assumia o controle da situação. Um breve momento de distração e, quando o policial se virou para alertar o jovem contra o risco de reagir a um ato de violência, ele já não se encontrava ali. Aproveitara a deixa e saíra do local, em velocidade normal. Sentia-se grande, poderoso, estupefato. Tentava entender o ocorrido quando se lembrou da pequena pedra fumegante. Pensou em tantas estórias fantasiosas escritas por autores de revistas em quadrinhos e quis pular. E pulou. E não se sentiu atraído pelo chão. Tomou a direção do prédio onde trabalhava e sentiu-se satisfeito por não depender mais de rodas.
         Passou um dia comum, embora um tanto quanto anormal. Solícito como sempre, oferecera-se para ajudar a ajudante de serviços gerais a trocar o garrafão do bebedouro do corredor. Vinte litros de água lhe pareceram tão pesados quanto em qualquer outro dia. Mas um pensamento estranho e alertou a colega que passava às suas costas, evitando que a mesma escorregasse no pano de limpeza no chão. Durante o almoço, no refeitório, esbarrou num garfo e, viu-o cair tão lentamente que foi capaz de pegá-lo novamente antes que percorresse dez centímetros em direção ao solo. Nenhum de seus colegas sequer percebera o ocorrido. Começava a compreender o que lhe ocorrera, e gostava. Deixou a barba crescer. Mudou o corte do cabelo. Trocou de terno. Comprou outra mochila. Alternava o óculos de grau com o de sol. Mudava o visual constantemente. Conseguia se fazer presente onde era necessário. Sempre em horários de folga. Era importante manter a rotina e garantir o anonimato. Os jornais anunciavam um herói - ou vários heróis, não sabiam afirmar. Conseguira seu objetivo, fugira do clichê dos uniformes extravagantes e capas e máscaras. Seus colegas de trabalho zombavam da semelhança entre ele e os vultos obtidos em imagens de câmeras de segurança e celulares modernos, e o jovem ria junto, ironizando a impossibilidade de alguém tão comum quanto ele vir a ser um herói.
         Até que um dia, um daqueles que se tornaram comuns para ele, voltou para casa, cansado. Impedira um assalto a outra padaria logo cedo. Convencera uma jovem a desistir do suicídio no horário de almoço. Resgatara um casal de um carro tombado em uma cidade vizinha no caminho para casa. Um banho rápido e dormiu, dispensando o jantar. E o novo dia começou de uma forma nada comum. Nada parecido com sua nova vida, nem com sua vida antiga. Tinha dificuldade em abrir os olhos. Seu corpo doía. Suas pernas estavam em uma posição estranha. Quando finalmente viu a luz, sentiu-se virado de lado, seu pescoço meio torto e o rosto comprimido contra um travesseiro de fronha branca. Tentou falar, mas não conseguiu. Tentou virar a cabeça e se afastar do travesseiro, mas também não conseguiu. Só era capaz de virar os olhos, freneticamente, de um lado a outro. Além da fronha branca, um pedaço de pano verde. Então, foi bruscamente deslocado e viu-se olhando para um teto também branco, sentindo o corpo todo dolorido, agredido. Olhou em volta, da forma que pôde, e viu mais panos verdes. Uma camiseta de cortes retos vestida em uma moça jovem. Outra camiseta semelhante vestida em outra mulher, mais idosa. Agora entendia, o pano verde cobria a barriga daquela jovem senhora. Parecia um uniforme, mas de onde, não era capaz de compreender. Olhava em volta e via um monitor com traços coloridos, números e letras que não faziam sentido, cheio de cabos pendurados que pareciam vir em sua direção. Do outro lado, um aparelho grande e cheio de botões, fazendo sons similares a rajadas de vento. Notou também vários outros aparelhos, cheios de fios transparentes, alguns coloridos, uns com penduricalhos e outros lisos, e todos pareciam convergir em sua direção.
         Foi então que ouviu uma voz suave exclamando "Olha, ele acordou! Vai chamar a mãe dele!" e percebeu que vinha da moça. Enquanto a jovem senhora se afastava, a moça olhou para o jovem e disse "Bom dia jovem! Que bom que acordou! Consegue me ouvir?" Quis gritar sim, mas sua voz não saiu. Sequer foi capaz de mover sua boca. "Aperta minha mão", falava a moça, como se conversasse com um deficiente auditivo. Tentou, muito, mas sua mão não parecia sua. "Pisca o olho se estiver me ouvindo." Piscou. Piscou. Piscou. Freneticamente. "Pisca uma vez pra sim e duas vezes pra não, tá me entendendo?" Piscou. "Ótimo, agora faz um não." Piscou piscou. "Que bom que está consciente! Sua mãe está chegando pra te ver, vou chamar a doutora pra conversar com você." E olhando em volta, localizou sua mãe, aproximando-se. Quis chamá-la, quis gritar, mas sua voz não saiu e sua boca não mexeu. "Meu filho! Até que enfim acordou! Você está no hospital, meu querido. Foi atropelado por um caminhão quando voltava do serviço e faz quase três meses que tá em coma." E então percebeu que ainda era capaz de chorar. Lágrimas quentes escorriam pelo seu rosto e sua mãe tentava secá-las, em vão, tão abundantes eram. "Não chora filho, vai ficar tudo bem agora. Você tá em um dos melhores hospitais da cidade, a empresa tá pagando tudo. O caminhão era de uma transportadora e o próprio dono da empresa, quando você ainda tava sendo socorrido, mandou te trazerem pra cá e disse que ia cobrir todos os gastos. Eles também pagaram minha passagem pra cá e tão pagando o hotel, mas eu quase não vou pra lá, tô ficando quase que só aqui no hospital, junto com você. A empresa chama Estrela Cadente e são todos pessoas muito boas. O próprio motorista que te atropelou já veio te visitar várias vezes, pediu desculpas muitas vezes e sempre chora quando vem, coitado, mesmo eu falando que foi um acidente que podia acontecer com qualquer um." E o jovem chorava, mais e mais. Chorava de dor. Seu corpo doía. Seu espírito também. O sonho que virara realidade nunca deixara de ser sonho. E até mesmo a realidade que vivia tornara-se um sonho, um eco do passado.
         Sua mãe tentou consolá-lo, ressaltando a fé de toda a família, elogiando o zelo da equipe hospitalar e contando as melhoras que já apresentara desde o acidente. A médica do plantão tentou consolá-lo, descrevendo a situação em que chegara, relatando a evolução do quadro clínico e comentando o estado atual. As enfermeiras e enfermeiros, os fisioterapeutas, as faxineiras, todos o conheciam pelo nome, todos sabiam sua história de acidentado e de jovem adulto, sabiam de sua formatura, seu trabalho, sua casa. Todos que passavam ao seu redor lamentavam seu sofrimento e incitavam sua melhora. Sopravam palavras de incentivo e esperança. E ele ouvia. Era só o que podia fazer, ouvir. Seus braços e pernas doíam. Seu peito e barriga doíam. Suas costas doíam. Sua alma doía. Passou o primeiro dia desperto chorando, desesperado, sem saber o que esperar do seu futuro. Não conseguia dormir. Fechava os olhos e ouvia os bipes dos diversos aparelhos ao seu redor. Ouvia os lamúrios dos pacientes vizinhos. Ouvia as conversas dos profissionais que trabalhavam. Quando o segundo dia começou, esgotara seu reservatório de lágrimas, mas ainda não era capaz de sorrir. Não era capaz sequer de mover sua boca. Só o que conseguia eram sins e nãos com piscada e piscada piscada. E pensava, muito. Sempre pensara, muito. Sempre sonhara, mas agora não era capaz de sonhar. Não mais. O mundo de sonhos em que vivia era agora o mundo real. Sua mente, antes povoada por imagens surreais de um jovem que não existia, era agora tomada de imagens antes reais de um jovem que existira, mas que agora parecia mais distante que o mais impossível dos sonhos.
         E assim se passaram os dias. Sentiu seu corpo sendo penetrado por sondas e agulhas de diversos tipos e tamanhos. Sentiu o carinho daqueles que atendiam a uma vocação e o desprezo daqueles que encontraram a frustração. Viu o motorista do caminhão se desmanchar em lágrimas de dor e alívio ao vê-lo acordado e consciente. Viu o dono da Estrela Cadente ajeitar sua gravata enquanto soprava promessas de incentivo. Soube que era sábado quando viu sua mãe ser substituída por seu pai e irmãs. Viu seu chefe tentar ser humano. E dissertava sobre verdades e mentiras e sobre tudo que sabia e queria saber, sempre em seus pensamentos, enquanto piscava sins e nãos. Suas mãos só se moviam nas mãos de outrém. Seus lábios não respondiam aos seus comandos. Descobriu que até mesmo sua respiração fora terceirizada.
         Assim se passaram onze dias. No décimo segundo, quando abriu os olhos após uma noite insone, viu sua mãe acordando na poltrona ao lado da cama. Já não sentia mais a revolta do injustiçado. Pelo contrário, sentia o peso do carrasco por prender sua querida genitora naquele sofrimento. Já não sentia mais a dor da perda. Sentia a saudade leve de quem viveu uma vida agradável. Até mesmo a dor física parecia amenizada. Passou um dia calmo e sereno. Até que uma hora piscou. E quando abriu os olhos, viu sua mãe a ressonar na sua poltrona cativa. Postado ao lado dela, em pé, um senhor de idade lhe acariciava os cabelos, observando-a com ternura. "Vovô?" disse ele, e para sua surpresa, sua voz saiu alta e clara. O homem, então, voltou seu olhar para o jovem e sorriu. Um movimento acima de sua cabeça e o jovem voltou seus olhos para cima, constatando a presença de uma jovem moça atrás de si, as mãos postas em concha sobre sua cabeça, sem tocá-lo, os olhos fechados e uma expressão concentrada. Quis sentar e, surpreendemente, apoiou-se nos cotovelos e elevou o corpo, sentando-se na cama. E então, ainda surpreso, ouviu sua voz dizer "Vovô? O que faz aqui? O senhor faleceu há muitos anos!" Em resposta, o homem se aproximou dele e, colocando suavemente a mão sobre seu peito, disse-lhe "Fique calmo, está tudo bem. Deite e descanse mais um pouco, precisamos terminar nosso trabalho. Ainda há tempo de despedir-se." e delicadamente fez com que o jovem se deitasse novamente. E então ele piscou, outra vez. E quando abriu os olhos, só via sua mãe num sono leve, um enfermeiro manuseando alguns aparelhos ao seu lado. Sentiu-se leve, como nunca se sentira antes. Quis conversar com sua mãe, e chamou-a. Sua voz não saiu, mas seu pensamento se deslocou e sua boca se moveu, pela primeira vez. Como se tivesse ouvido seu chamado, sua mãe acordou, calmamente, levantou-se e postou-se ao lado dele, em pé. "Tá tudo bem, meu anjo, a mamãe está aqui." E ele a olhou nos olhos, com carinho, como nunca olhara antes. E, mesmo sabendo que sua voz não seria ouvida, disse "Mamãe... eu te amo... me desculpe." e sequer percebeu que seus lábios se moveram. Sem saber se lera seus lábios ou se ouvira seus pensamentos, a mãe respondeu "Eu também te amo, meu querido, mas desculpe por quê?" E o jovem piscou de novo e, quando abriu seus olhos, viu seu avô ao seu lado, envolvendo sua mãe em um abraço. Do outro lado, a jovem o observava com ternura, estendendo-lhe a mão como se o convidasse a se levantar. Piscou novamente e viu sua mãe, seus lábios se movendo, mas não foi capaz de compreender suas palavras. Fechou os olhos e tomou a mão da jovem, levantando-se, abrindo os olhos enquanto se firmava em suas pernas. Olhou em volta e viu aquele monitor cheio de traçados e números. Viu aquela linha verde que formava um desenho geométrico, regular e uniforme, tornar-se plana, contínua, sem oscilações. Viu uma luz vermelha piscar, chamando a atenção do enfermeiro ao seu lado. Viu o enfermeiro puxar o lençol que o cobria e mexer nas peças grudadas em seu peito e, em seguida, levar os dedos indicador e médio ao seu pescoço, logo abaixo da mandíbula. Foi então que percebeu que via a si mesmo, deitado ao lado de sua mãe. Viu outra enfermeira se aproximar e, a uma troca de olhares com o primeiro, envolveu a mãe e parecia convidá-la a se retirar, ao mesmo tempo que o primeiro corria até um carrinho repleto de gavetas e equipamentos diferentes, trazendo-o em direção a sua cama enquanto uma terceira pessoa corria, seguida do médico do plantão. Enquanto via sua mãe, assustada, ser levada em direção oposta enquanto uma cortina era fechada ao redor do seu leito e outras pessoas se aproximavam, sentiu o braço de seu avô a envolvê-lo, convidando-o "Vamos?" e percebeu que ainda segurava a mão da jovem. Apertou-a, como se quisesse ter certeza de que aquilo era real. Olhou em seus olhos, cheios de carinho e compreensão, e olhou para o avô, que o fitava com um sorriso acolhedor, e deixou-se guiar em direção à porta. No meio do caminho, parou, desvencilhou-se dos seus companheiros, abraçou sua mãe, envolvendo-a com os dois braços, beijou-lhe a testa e sussurou "Mãezinha, eu te amo! Não chores mais, pois estou livre!" e seguiu adiante, com suas próprias pernas, lado a lado com seu avô e a jovem. Atravessou a porta, sem olhar para trás. Aquela não era mais sua realidade.