Eram ele e ela. Há muito tempo que iam e vinham nesse amor conturbado, doentio, possessivo. Muitas vidas tentaram e muitas vidas falharam. Até que resolveram tentar diferente, um amor à distância dessa vez. Um amor impossível que os obrigaria a exercitar o desapego. Mais que isso, esse amor libertador abriria o caminho para que seus filhos concretizassem a união de dois inimigos.
E assim nasceram, ele Romeu, ela Julieta. Deveriam amar-se à distância, encontrando-se em sonhos, admirando-se na vigília. Cultivados nesse amor impossível, pavimentariam o caminho para que seus descendentes superassem as barreiras impostas por gerações de ódio. Era assim que deveria ser. Era assim que teria sido, não tivessem caído em tentação novamente, cedendo às suas impulsividades da imperfeição. Cegos nesse doentio amor, construíram a própria ruína, encerrando prematuramente essa nova oportunidade, cada qual algoz de si mesmo. Ele, pelo sabor amargo do veneno. Ela, pela dor lancinante do punhal. E assim atingem o outro lado. Semi-inconscientes ainda, sem entender o que lhes passa e ainda alheios à magnitude do crime cometido.
Ele, suicida e assassino, é assediado pelas suas vítimas, torturado por almas amarguradas que lhe atormentam a consciência e lhe sugam a energia vital ainda presente em suas ligações fluídicas, rotas, sangrentas. Sofre ainda com a queimação em suas vísceras, o ardor do veneno que lhe corrói as entranhas. Ouve uma súplica, uma voz que lhe evoca a presença, distante, angustiada, mas não lhe identifica a presença, incapaz de localizá-la. E chama seu nome, implorando seu toque, clamando por socorro.
Ela, imprudente e suicida, sofre a tormenta da própria consciência. Sente, ainda, os efeitos do falso veneno, mãos e pés, braços e pernas dormentes, vertigens, prestes a perder a consciência a qualquer momento. O que lhe mantém a vigília é aquela dor lancinante no peito, a mesma lâmina fincada em seu coração a lhe dilacerar toda a esperança. Chama seu nome, espera seu socorro, enquanto ouve uma voz que parece a dele chamando-a também, suplicante. Mas ao seu redor, nada vê além de outras damas caídas, dormentes ou gementes, algumas sangram, outras sequer parecem viver.
Mas todo sofrimento tem cura e, ela primeiro, toma ciência do erro cometido e clama por misericórdia. Em sua sonolência, parece sentir bandagens envolvendo seu corpo, antes de ser elevada e acomodada em algo que lhe parece uma carruagem. Sonhos turbulentos agitam seu sono, um baile, um rosto enfumaçado, imagens embaçadas que vêm e vão. Quando finalmente desperta, está em uma maca e, ao seu redor, muitas outras similares parecem conter outras inconsciências. Levanta-se e dói-lhe o peito. Por baixo de uma camisola que não se lembra de ter vestido, sente bandagens recém-colocadas sobre uma dor funda e antiga. Um rosto desconhecido se aproxima "Bem vinda! Que bom que despertou. Há dias estamos aguardando." e lhe oferece um copo d'água. Só então percebe o tamanho de sua sede e sorve toda aquela água em poucos goles, devolvendo o copo e suplicando mais com o olhar. Não sabe onde está, não sabe o que se passa nem o que se passou. Sente-se confusa, com vagas lembranças daqueles sonhos, incapaz de discernir o real do onírico. "Não se preocupe - responde-lhe o rosto desconhecido, como se ouvisse suas súplicas em pensamento -, você está entre amigos. Meu nome é Clara e estive cuidando de você durante os dias em que esteve dormindo. Tome mais um gole de água. Consegue se sentar? Ótimo! Agora que acordou, não precisa mais ficar aqui. Vou levá-la até um quarto, onde poderá ficar mais à vontade." e, a um sinal seu, outra colaboradora sorridente aproximou-se, trazendo uma cadeira com rodas. Ambas auxiliaram-na a se transferir e, em seguida, Clara a conduziu até um quarto, pequeno mas aconchegante, com um catre pequeno coberto por lençol alvo e uma poltrona, um jarro de água e uma ampla janela com vista para imenso jardim florido.
Os dias passam naquele pequeno cômodo. Reaprende a falar com as orações executadas na companhia da dedicada Clara. Seu corpo se fortalece, já não necessita de auxílio para dirigir-se à poltrona e, sempre acompanhada, as excursões ao jardim lhe revigoram o ânimo. Até mesmo a dor parece diminuir diante de tamanho zelo e beleza. Só o que ainda lhe atormenta são as lembranças. A ausência delas, na verdade. Não se recorda do próprio nome, não sabe onde está nem de onde vem. "O esquecimento, às vezes, é uma benção!" diz-lhe Clara, ocasionalmente. Certo dia, Clara adentra o quarto acompanhada de respeitável senhor, com expressão séria porém carinhosa. Clarêncio, após apresentação adequada, identifica-se como médico, discute aquela ferida em seu peito, que ainda lhe dificulta a movimentação, e diz que agora se inicia nova fase de tratamento para a cura daquele mal. Aliviada, recebe de suas mãos um cálice com líquido rosado, de sabor agradável, e antes que termine de agradecer, já está profundamente adormecida.
Ele, por sua vez, demorou mais. Luta contra a corrosão em seu interior e confronta suas vítimas, agora algozes, à procura de seu amor perdido. Cego de ódio, dor e paixão, não vê à sua volta as presenças angélicas que chamam seu nome com promessas de alívio e recuperação. Segue por dias incontáveis naquela condição, até que finalmente, esgotado há muito, cansado como nunca antes, cai de joelhos e chora, copiosamente. Arrepende-se e clama por perdão, finalmente tornando-se capaz de receber o auxílio oferecido. Não vê, mas sente, e aquele toque em sua fronte parece renovar-lhe a esperança, acalmar-lhe os pensamentos, aliviar-lhe as dores. Adormece, profundamente, totalmente inconsciente.
Adormecidos, ambos são trazidos de volta ao mundo, sem saber quantos séculos terrenos haviam se passado. Seus amigos, que há tantas gerações intercedem pelo crescimento daquelas almas sofridas, preparam-lhes nova oportunidade e agora trabalham, incansavelmente, no preparo daquela que seria a redenção dos amantes. Levados para longe daquele terreno que lhes era familiar, são conduzidos a ambiente amigo porém renovado, preparado por seus irmãos para recebê-los. Duas mães, duas gestações.
Ele nasce primeiro e chora, convulsivamente, um choro que não cessa com o passar dos dias. "Uma mal formação congênita do aparelho gastrintestinal" diz o médico à mãe, após várias tentativas de descobrir o que se passa com aquela criança que parecia tão saudável. Internado e submetido a cirurgia, acomodado naquela unidade pediátrica humanizada, com a mãe ao lado incansavelmente, alimentando-o e acalentando-o. Ela nasce depois, uma gravidez complicada e sofrida também para a mãe, infelizmente falecida no parto. O pai, ressentido em sua imperfeição, não entende a missão assumida pela companheira e é incapaz de amar aquela criança a quem atribui o assassínio de sua amada. Os médicos e enfermeiras lamentam pela criança e especulam sobre seu futuro, até que um deles, após investigar a causa daquela estranha fraqueza de uma criança saudável, encontra aquela anomalia cardíaca tão rara. Mais lamentos, cobrindo um sorriso disfarçado naquela instituição de ensino, diante da possibilidade do tratamento experimental. É admitida naquela unidade pediátrica humanizada, tratada, abandonada e sozinha. E a mãe dele, uma daquelas que há tanto tempo constróem a redenção daquelas almas, assume a outra parte de seu compromisso e divide seu alimento sagrado entre um e outro.
E assim, no caminho da dor e do sofrimento, encontrarão a redenção. Uma existência breve, rápida e difícil. Viverão tempo suficiente para se conhecer, mas não para compreender o que é aquela sensação de troca de olhares. Além do tabu da infância, serão criados como irmãos e se amarão como tal, entre as grades de dois leitos. No entanto, ao retomarem suas consciências, suas almas compreenderiam a verdadeira lição, de tão difícil aprendizado. Levariam para sempre aquele verdadeiro amor, fraterno e libertador, e tendo ele por base, construíriam grandes obras e executariam grandes feitos.
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