Sozinho

Ele aparentava cerca de 70 anos de idade. Morava naquele asilo que fica logo ali, dobrando a esquina. Tinha sempre um sorriso no rosto e uma expressão leve e acolhedora. Diferente dos outros, trazidos por filhos, netos, sobrinhos, às vezes até por irmãos, chegara até ali sozinho. Viera de táxi, carregando as próprias malas. Ou melhor, a própria mala, já que era um volume só, e tinha quase mais livros que roupas. Não se sabia qual sua fonte de renda, mas pagava ele mesmo a mensalidade da instituição, mês a mês, sem atraso. E ainda recebia, ocasionalmente, algumas compras feitas pela internet. No seu cadastro, apenas um contato de emergência, um sobrinho em outra cidade, um tanto quanto longe.


E aquele era um dia um pouco atípico, que acontecia ocasionalmente, mas infelizmente não era rotina. Era uma terça-feira ensolarada, com escassas nuvens brancas, e um grupo de jovens escolares visitava a instituição, de acordo com a filosofia cristã de caridade daquela renomada escola. Não era a primeira vez que observava aqueles jovens. Ano a ano, os grupos se alteravam e surgiam novos rostos que pareciam cada vez mais jovens, mais inexperientes e, às vezes, mais assustados. Era interessante observar um certo padrão que se repetia: a primeira visita era sempre meio devagar, tímida. As crianças não sabiam o que fazer nem como abordar os residentes e, em geral, eram eles que começavam o trabalho. Os mais lúcidos, num primeiro momento, se aproximavam devagar e acolhiam os pequenos, com pequenas conversas e breves histórias. Quando os jovens se sentiam mais à vontade, os idosos então os levavam a passear, apresentavam os menos lúcidos e alongavam as histórias. Lá pela terceira ou quarta visita, o grupo já estava familiarizado e os escolares já chegavam procurando seus favoritos, aqueles com quem tinham mais intimidade, e traziam atividades diferentes, como pequenas apresentações de teatro, uma refeição diferenciada, brincadeiras adaptadas às limitações dos velhinhos.

Há quatro anos lá, era o quarto grupo que observava. Tinha o hábito de observar, de ficar meio distante, apenas assistindo e acompanhando. Participava de algumas atividades, de outras escapava à francesa. Algumas vezes fora abordado, mas a conversa nunca ia além de algumas amenidades do dia-a-dia ou pequenas incursões no passado, sempre desinteressadas, como quem oferece um pequeno agrado a um necessitado, geralmente falando pelos cotovelos. Ficava meio incomodado com esse tipo de caridade, por isso dava preferência às crianças que ouviam mais do que falavam, ainda que ele mesmo não fosse um grande falador. Gostava mesmo era de assistir o efeito daquelas pequenas presenças no espírito do asilo. Seus companheiros e companheiras continuavam a comentar por dias a fio aquela breve incursão. Era pena que esses dias se esgotavam antes da próxima visita.

Certa feita, sentado ao lado de uma senhora que, embora já apresentasse raros episódios de desorientação, mantinha-se bastante lúcida, observou uma jovem que se aproximava e, num ato de gentileza, afastou-se um pouco para a esquerda, convidando-a a sentar-se entre os dois. A moça sentou-se e começou puxando assunto com a senhora. Conversaram sobre presente e passado. Mais sobre passado que sobre presente. E aquele senhor gostava da atenção daquela menina. Ouvia com um interesse verdadeiro e seus comentários e exclamações eram sempre pertinentes e permitiam que a velhinha aprofundasse sua conversa e falasse até esgotar suas palavras. Os olhos daquela senhora brilhavam de satisfação, um brilho colorido em Technicolor, enquanto ela falava sobre sua vida. E mesmo no presente, seu discurso exalava novela de época ao comentar, discretamente, entre risinhos, seu namorico com respeitável senhor residente daquela instituição. E foi nesse gancho que a pequena moçoila se pendurou para trazê-lo ao assunto, logo após a chegada de um rapaz que engatou conversa com a senhora, perguntando-lhe "E o senhor, tão bem apessoado e sempre bem vestido, não namora ninguém aqui dentro?" com um sorriso que oscilava entre a inocência da pergunta e a malícia da intenção. "Vixe, faz tanto tempo que não namoro ninguém que acho que nem sei mais como se faz isso", foi a resposta oferecida, coroada com uma sonora gargalhada de quem desvia um ataque. "Ah, sério mesmo? Se o senhor quiser, então, eu posso brincar de ser sua namorada pro senhor relembrar como é!" foi a réplica da menina, seguida de um risinho brincalhão de neta. Fingindo seriedade, o senhor desconversou "Ê menina, pára com isso que eu tenho idade pra ser seu pai... três vezes!" E a jovem, com a mesma bondade que demonstrara na conversa com a velhinha, perguntou "O senhor é viúvo?" querendo dar continuidade à conversa. "Pra ser viúvo, teria que ter sido casado, menina, e essa felicidade eu não tive na minha vida." "Sério mesmo? Mas por que não? O senhor é tão bonito, deve ter sido um arrasa coração na sua juventude." Rindo, uma risada franca e divertida, ele então responde "Nem tanto assim... Essa beleza de agora é porque sou velho e minhas rugas escondem muita coisa. Era até que bonito, sim, mas não tanto quanto você imagina, e não arrasei muitos corações. Talvez tenha sido até mais arrasado que arrasador." Inocentemente, a pequena pergunta "Então foi o senhor que nunca quis casar?"

E então ele se ajeita no banco, arruma o óculos no nariz e diz "Olha, querer eu quis, mais de uma vez e com mais de uma moça. E, cada vez por um motivo, ou talvez todas as vezes pelo mesmo motivo, não sei dizer bem, não deu certo com nenhuma delas. Sequer cheguei a noivar." Surpresa, a menina exclama "Que pena!" com uma sincera expressão de compaixão em seu rosto. Num gesto como se dispersasse fumaça, ele continua "Pena por que? Só porque não casei? Isso não quer dizer que fui infeliz. Acho que meu último namoro terminou terminou antes que completasse quarenta anos e, desde então, estou sozinho. Ou melhor, solteiro. Sozinho de verdade eu nunca estive. Mantive minha família por perto, amei meus sobrinhos e sobrinhas como se fosse filhos. Minha casa vivia cheia de amigos e minha profissão me obrigava a estar sempre rodeado de pessoas. Mesmo agora, quando meus amigos e parentes começaram a ficar mais escassos, preferi vir morar aqui, ao invés de ficar sozinho em casa." "Mas mesmo assim, o senhor não se sentia solitário? Não sentia falta de uma companheira?" pergunta novamente a moça, ainda mais surpresa e interessada. "Sentia, sim, várias vezes. Mas ao longo dos anos aprendi a viver sozinho. O casamento é uma coisa muito difícil, mas talvez seja mais fácil que viver sozinho, porque a gente sempre tem alguém pra dividir a vida, tanto as coisas boas quanto as ruins. Até quando ele não dá certo e termina em divórcio, ainda é mais fácil que a solteirice, porque você tem alguém pra culpar e xingar, pra aliviar as dores do próprio coração. Quem se casa, sempre tem alguém que depende dela e alguém pra depender. Quem é sozinho não tem isso, fica com tudo que é bom pra si mesmo, mas também tem que agüentar tudo que é ruim e não tem em quem pôr a culpa. Hoje, eu acho que nem todo mundo nasce pra casar. Tem gente que talvez nasça justamente pra aprender a viver sozinho, pra construir a própria pessoa, pra aprender a não depender dos outros. Isso é quase a mesma coisa que carregar uma montanha sozinho. Não é impossível, mas é muito difícil. Tudo na vida é difícil, mas aprendi que cada um tem uma dificuldade pra enfrentar." E antes que a moça pudesse continuar, a conversa terminou, quando aquele rapaz se levantou, chamando pra brincadeira que iria começar.

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