Era uma raça rústica, tão virgem quanto o chão que pisava. Comunicavam-se aos trancos e barrancos, com grunhidos guturais quase incompreensíveis e uma linguagem corporal baseada na violência. Eram poucos, menos ainda que os anjos, desprovidos de asas e graciosidade. Os alados riam-se da infância daquela raça ignorante, compreendendo suas intenções ainda primitivas e meramente sobrevivenciais. Até que o primeiro deles, tomando coragem, decidiu-se por se aproximar de um dos outros. E observou que ele parecia mudar ante sua aproximação. Serenava-se, como se pudesse senti-lo, apesar de não vê-lo. E, inspirado por aquela serenidade, soprou um carinho e viu aquela sobrevivência demonstrar um toque de convivência quando aquela linguagem violenta delicadamente deu lugar a um toque humano. Inesperadamente, ou talvez nem tão inesperado assim, a reação de outro dos outros foi um choque explosivo que afastou o primeiro e repeliu a entidade angélica, dando lugar novamente à natureza daqueles primitivos. Rápida e instintivamente, um segundo anjo concentrou-se no segundo quasihumano que reagiu com a serenidade do primeiro, interrompendo um gesto quase fatal, como se enfim compreendese o quão vil seria. E a legião angélica então assombrou-se com seu próprio poder.
E um a um, experimentaram aquela atitude. Por aproximação ou por pensamento, afinaram-se com aqueles irmãos ignorantes. E eles, também novos no universo, começaram a compreender e a enxergar a complexidade daquela raça ainda em evolução. Passaram a enxergar vontades e aspirações que não viam como meros observadores. E aos poucos, aqui e ali, alinharam-se com esse desejo ou com aquela inspiração, e um a um, sintonizaram-se com seus protegidos. Exceto aquele primeiro anjo, que junto a um pequeno grupo, afinava-se e compartilhava de todas aquelas aspirações. Desejavam todos os desejos e inspiravam-se com todas as vontades. E então, quando os anjos enfim compreenderam o intuito de sua criação, prepararam-se para retornar e se reunir com o criador para que pudessem caminhar com seu trabalho de cocriadores. Todos, exceto aquele primeiro anjo e aquele pequeno grupo. Ansiavam o trabalho, mas desejavam a proximidade. Sem saber o que fazer, ajoelharam-se e confiaram na providência daquele que os havia enviado.
E assim, enquanto se encaminhava para a presença do criador, Miguel, o mais famoso dos anjos, voltou-se para observar seus pequenos irmãos uma última vez, e o que viu foi aquela pequena leigão, toda composta de anjos mulheres, ajoelhada, confiando. Aos poucos, suas asas iam-se desmanchando, pena a pena, e seus corpos pareciam menos radiantes e mais densos. E aquela raça que ainda engatinhava começava a tomar consciência daquelas presenças que se materializavam bem à sua frente. E assim nasceram as primeiras mulheres humanas, cocriadoras de origem angelical prontas a suprimir o quasi que essa raça recém-nascida levava. E, embora aquela legião houvesse renunciado a toda a leveza que possuía, Miguel não temia, pois o brilho nos olhos e o amor no toque revelavam que a humanidade jamais poderia apagar a angelitude daquelas sublimes entidades.
No dia em que os anjos desceram à terra
Aconteceu no dia em que os anjos desceram à terra. Eu me lembro como se fosse ontem. Eram apenas algumas centenas deles. Poucos, se comparados aos que existem hoje. Ainda estavam no começo de sua criação e vinham conhecer o mundo onde atuariam. Tudo ainda era novo, um tanto quanto rústico, pura virgindade de um solo que ainda seria cultivado. E foi ali que aquela legião angélica aportou, em seus deslumbrantes mantos esvoaçantes e suas alvas asas majestosas. Seus olhos brilhavam, aguçados pela curiosidade daquilo que os esperava, mas não possuíam auréolas, ainda, visto que não havia motivos para merecê-las. E foi assim que tiveram o primeiro contato.
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