Anjo

E eis que ela surgiu, em um vestido azul anil, longo e esvoaçante. Aquele caminhar volitante, leve porém resoluto, os quadris se movendo de um modo firme porém delicado. Seus olhos cor de madeira traziam uma expressão serena, com a profundidade de um oceano e a beleza de um entardecer. E quando se movimentava, era como se o ar desse passagem a cada graciosidade que seu corpo produzia. E então ele piscou e esfregou os olhos, como se quisesse ter certeza de estar acordado. E quando os abriu novamente, aquele breu fez com que tateasse ao redor até tocar o interruptor, e tudo que viu foi um teto branco levemente amarelado, sugerindo que despertara. E antes que pudesse duvidar, o canto do despertador trouxe-lhe a certeza do que era real e do que fora onírico. Levantou-se, banhou-se, vestiu-se, alimentou-se, encaminhou-se, trabalhou-se, alimentou-se novamente, trabalhou-se mais, voltou-se, banhou-se outra vez, vestiu-se de novo e deitou-se. Um dia comum. Mais um dia comum. Mas com aquela constância no pensamento, aquela imagem de sonho que fixara-se em sua mente e movimentara sua imaginação. E, a muito custo, finalmente adormeceu. E então ele a viu.

Estava sentada diante dele, sobre uma pedra. Olhou ao redor e viu-se numa clareira, rodeada de árvores frondosas e salpicada de pequenas flores coloridas que interagiam com a veste azul anil que ela usava. Ele a encarou, com medo de piscar. E observaram-se mutuamente, sabe-se lá por quanto tempo. E quando se tornou inevitável, ele piscou, e reabriu os olhos, temeroso. E eis que ela ainda estava lá. E então ele sentou, com um leve sorriso de alívio. E ela retribuiu o sorriso. E nesse momento, o sol brilhou mais forte, as flores coloriram mais intensamente, os pássaros cantaram com mais vigor, o vento soprou com mais carinho. Pelo menos, foi assim que ele sentiu aquele sorriso. “Quem é você?” perguntou ele, com uma coragem vinda sabe-se lá de onde. “Ninguém importante” respondeu ela. “Como, ninguém importante? Seus olhos brilham e o seu sorriso ilumina. Sua presença parece ser suficiente para que todas as cores ganhem vida e para que o mundo se anime! Como é possível que seja ninguém importante?! Diga-me seu nome, por favor!” E então ela perguntou o que ele achava do bosque. Se gostava das flores. Se a luminosidade o agradava. E o convidou a um passeio. E ele foi sem saber seu nome, e sem se importar com isso. Andaram e riram e conversaram e desfrutaram até chegarem à beira do lago, onde ela então se despediu. “Vou vê-la novamente?” questionou. “Quem sabe...” respondeu. E então ele viu aquele rosto angélico se aproximando e fechou os olhos para recebê-lo. Sentiu o doce contato daqueles lábios a tocarem-lhe a ponta do nariz, e abruiu os olhos a tempo de ver o sol nascendo através de sua janela. E assim, com uma certa dificuldade, levantou-se e seguiu-se em sua rotina, repetindo cada passo daquela noite em sua memória. E naquela noite, o sono veio com a fluidez de um córrego que desce a montanha. Ainda de olhos fechados, sentiu aquele calor agradável a banhar-lhe o corpo. Sorriu, e abriu os olhos, e lá estava ela com aquele sorriso estelar.

E assim se seguiram os dias. Ao nascer do sol, despertava e seguia sua rotina usual. Ao deitar-se, despertava do outro lado e vivia seu sonho. Anjo, era como ele a chamava. Não lhe importava o nome, desde que ela estivesse lá. Até a noite em que ela não esteve. Naquela noite, sonhou com aviões, aventuras, animais e muitas outras fantasias, mas ela não veio. E na noite seguinte também. E na outra. Na quarta noite, lá estava ela, aquele vestido azul anil e aquele sorriso ensolarado. Mas, por um momento, aquela visão não foi suficiente para iluminá-lo. Numa quase carranca, perguntou “Onde esteve? Por que não veio, por que se ausentou todo esse tempo?” Seu sorriso desmanchou-se numa serena seriedade enquanto respondia “Porque não pude. Ou porque não quis. Não importa, são motivos meus. Não sou propriedade sua, sou livre, vou e volto como bem entender. E se hoje estou aqui, é porque quero estar aqui.” E então ele fechou seu rosto em dúvida ao perguntar “Como? Isso é um sonho, um sonho meu. De que forma você pode ir e voltar como quiser se sou eu que estou a sonhar?” Então, esboçando um sorriso compreensivo como quem fala a uma criança, disse “Um sonho? Seu sonho? Ainda não entendeu, não é?...” “Mas se isso não é um sonho, então o que é?...” perguntou novamente. E antes que terminasse a frase, sentiu sua mão a tocar-lhe o rosto, um toque quente, suave, real! Pôs sua mão sobre a dela e sentiu-a ainda mais delicada, ainda mais real... E então, num impulso de vida e desejo, levou aquela mão àquele rosto semidivino e envolveu-a pela cintura e trouxe-a para aquele tão esperado beijo. E pouco a pouco sentiu aquele contato esvair-se até ser despertado pelo sol que aquecia seus pés. Sentindo ainda a boca quente e seu espírito em êxtase, trouxe a mão ao rosto e sentiu aquele perfume de flores e frutas e então compreendeu.

E então passou outra noite a sonhar coisas irreais. E durante o dia, revivia em sua memória cada momento experimentado naquele outro mundo. E outra noite vazia se seguiu àquela. E mais outra. E outras mais. Até que novamente deitou-se e sentiu aquele calor familiar. E respirou aquele perfume esperado. “Pensei que não a veria mais” disse, de olhos ainda fechados. “E não veria”, disse ela, “mas foi mais forte que eu...”, enquanto acariciava-lhe os cabelos. E quando enfim abriu os olhos, viu aquele queixo desenhado pelos anjos e aqueles olhos de madeira a observá-los de cima, com uma ternura que lhe era desconhecida até então. Fechou novamente os olhos, a desfrutar, enquanto indagava “Quando irei vê-la de verdade?” “Mas isso, aqui, agora, é verdade!” respondeu ela. “Sim, eu sei, mas... bem... quero dizer, quando irei vê-la acordado?” replicou ele. “Mas você está acordado”, treplicou ela, e antes que ele formulasse nova frase, continuou “o que ainda não entendeu, ou não aceitou, é que algo em você deve adormecer para que outra parte desperte. De lá para cá, de cá para lá, não importa. Algo adormece para que outro desperte.” E ele meditou aquelas palavras no silêncio daquele afago. “Mas... onde é cá?” perguntou enfim. “Também não sei”, respondeu ela, “só sei que cá é onde posso encontrá-lo, como se fosse um mundo só nosso...” E assim viveram novos dias, naquele sentimento novo e crescente e diferente e... fantástico! Até que outro despertar aconteceu...

Ele abriu os olhos e sentiu um calor diferente. Familiar, mais familiar que outros calores. Olhou ao seu redor e parecia reconhecer aquela paisagem. Parecia... seu mundo. As cores eram mais vivas e as sensações mais intensas. As vibrações mais radiantes e os perfumes mais marcantes. “Ah, sim, agora faz sentido...” ouviu, no som cristalino daquela voz tão desejada. Virou-se e viu-a, em um vestido azul ciano mais leve e mais curto, fresco como se espera que seja naquele mundo de calor. “Mas... o que você está fazendo aqui?” perguntou, num misto de surpresa e alegria. “Esse lugar, esse espaço, esse mundo, onde estamos?” foi a vez dela perguntar. “Aqui é onde vivo, onde existo. Aqui é onde aconteço. Parece diferente, de alguma forma que não consigo explicar. Como se fosse... mais real que a minha realidade, talvez... Mas... como você chegou até aqui?” “Não sei. Assim como não sei como criamos aquele mundo só nosso. Talvez sua vontade de me trazer até aqui. Talvez minha vontade de estar ao seu lado. Talvez todos os fatores juntos. Não sei. Mas sei que estou aqui e gostaria de aproveitar ao máximo cada momento...!” E sorriu aquele sorriso capaz de iluminar uma vida. E ele sorriu de volta aquele sorriso digno de quem recebe uma vida. E levou-a a conhecer seu mundo. Mostrou-lhe seus motivos e suas alegrias, suas tristezas e seus pensamentos, seus sonhos e suas verdades. E ao término daquele passeio, perguntou-lhe “E quando conhecerei seu mundo?...” “Não sei”, respondeu-lhe, francamente, “honestamente, não sei. Um dia, talvez. Nunca, quem sabe. Não sei se estou pronta para recebê-lo lá. Não sei se algum dia estarei...” E apesar daquela resposta incerta, gostou daquela nova possibilidade. E então, suas noites passaram a alternar-se entre um mundo e outro mundo. E algumas noites vazias também, que passou a chamar de noites essenciais, pois renovavam-lhe a saudade e a vontade e o desejo e a certeza. E assim seguiu, sabe-se lá por quanto tempo, uma medida que não existia naquele mundo onde se encontravam. Até o dia em que despertou, surpreso novamente. Olhou ao redor e viu um mundo de cores extravagantes e perfumes diferentes, levemente embaçado e nebuloso. Tinha dificuldade em distinguir formas, esfregava os olhos e caminhava com passos cambaleantes, até que viu. Até que a viu. Vestida em um macacão azul celeste sobre uma camiseta azul índigo, confortável embora confusa, parecia não entender. E então ele sorriu, pela primeira vez um sorriso capaz de iluminar um dia. E então tudo ficou claro, enquanto ele caminhava resoluto em direção à dona daquele universo que até então lhe era desconhecido...

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