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Desceu a escadaria e deparou-se com a porta. Aproximou a mão da maçaneta, mas estacou antes de tocá-la. Tremia feito vara verde, como diria sua avó. O suor frio que brotava em sua fronte fez perceber que ainda não era hora. Ainda não era capaz de confrontar aquilo. Há três meses não saía de casa. Três longos meses. Três intermináveis meses. Três malditos meses. Noventa e sete dias, mais precisamente, contados um a um, quase uma hora de cada vez. Dessas duas mil trezentas e vinte e oito horas, dormira menos de quatrocentas. Trezentas e oitenta e oito, mais precisamente, essas sim, contadas uma de cada vez. E vinte e sete minutos. Era a quinta vez que tentava sair. Naquele dia, apenas. Ao todo, foram novecentas e sessenta e duas tentativas ao longo daquelas treze semanas. Em todas elas, o processo se repetia. Tinha certeza de que aquela seria a definitiva, quando ainda estava no alto da escadaria. No meio, acreditava que seria capaz. No último degrau, rente ao solo, achava que conseguiria. Frente à porta, temia não conseguir. E quando buscava a maçaneta, sabia que voltaria atrás. E assim, baixou a mão e voltou à escadaria. Quem sabe o nonagésimo oitavo dia traria novas forças...
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Acordou atrasado. Olhou o relógio e vociferou algumas expressões pouco educadas. Levantou num salto, ignorou aquela sensação vertiginosa e dirigiu-se ao banheiro. Uma chuveirada rápida e a primeira roupa limpa serviu como vestimenta. Um pão na boca e um chiclete no bolso, pegou uma lata de suco e a chave do carro, levando a gravata em torno do pescoço, à espera do nó. Conferiu o relógio do carro e cosntatou que ainda tinha tempo de não se atrasar. Se o trânsito permitisse. Aliás, se o trânsito todo estivesse daquele jeito, conseguiria chegar cedo, até. Aliás, naquele horário, daquele dia, era de se estranhar aquele trânsito tão livre. Ao ligar o rádio, desatou a rir quando ouviu o locutor celebrar o feriado. E então constatou que um despertador não toca quando não está programado para tal. Pensou no que fazer. Praia não era uma opção, muitos provavelmente já estavam a caminho. Não gostava de shoppings e o campo era muito longe. Resolveu então fazer algo que há muito planejava, mas nunca tinha tempo de fazer. Uma visita que há muitos anos desejava. Dirigiu seu carro até a praça mais próxima. Pegou o celular, e desligou-o. Deixou a gravata no banco do passageiro, desabotoou metade da camisa e subiu as mangas. Pegou aquela toalha esquecida no banco de trás e então saiu do carro. Estendeu-a no gramado e deitou-se sobre ela. E, finalmente, pôs-se a ouvir os próprios pensamentos.
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Quantas vezes já te disse pra fechar a porta do carro com cuidado? Menos do que me mandou arrumar o quarto. Algum dia você vai deixar de ser um adolescente respondão? Algum dia o senhor vai deixar de ser um chato implicante? Quem sabe no dia em que eu deixar de ser seu pai. Ok, temos uma data marcada, então, você deixa de ser chato e eu deixo de ser adolescente. E quando vai deixar de ser respondão? Quando o senhor deixar de ser implicante. Nunca, então... Parece que sim... Estudou pra prova hoje? Não tenho prova hoje. Estudou pra prova hoje? Não tenho prova hoje, já disse. Estudou pra prova hoje? Mas que coisa, como você sabe que tenho prova hoje? Não sei, mas você sempre se entrega na terceira vez que pergunto. Droga! Olha a boca! Desculpe. E então, estudou ou não? Quase... Como, quase? Só faltou uma coisa pra eu estudar pra prova de hoje. O quê? Lembrar de qual matéria é a prova... O QUÊ? Ah pai... Ah pai o escambau! Olha a boca! Não me remeda! Desculpa... Como alguém não lembra de qual disciplina vai fazer prova? Ah, sabe como é, né... Não, não sei, me explica. Ah pai, é complicado, né! O que é complicado? Ah, sei lá... Sei lá, o quê? Ah, muita coisa pra pensar, né... Como que alguém que só estuda tem muita coisa pra pensar? Ah, bom, tem a fome na África, a seca no Nordeste, a neve na calota solar. Polar. Ou isso, muita coisa pra pensar, sabe como é, né... Não, não sei, e às vezes acho melhor nem saber. Credo pai!... E o que vai fazer com a prova hoje? Ah, sei lá... Sei lá, como? Pô pai, quanta pergunta! E nenhuma resposta, né?! Relaxa, pai, eu dou um jeito. Você sempre dá um jeito, e isso me preocupa... Qualé, o senhor nunca foi chamado na escola! Pois é, mas não se se é porque você é um bom exemplo, ou um bom mentiroso... Pô pai, não confia na educação que me deu? Na educação eu confio, só não confio no uso que você faz dela. Faz sentido... Pois é. Pára aqui, vou descer na esquina. Por quê? Preciso de um chiclete. Chiclete? Sim, chiclete. Sei... Qualé, juízo eu tenho, viu! Então vê se usa! Pô pai... Pronto, tá entregue. Valeu, até mais tarde. Vai com Deus, te amo. Também, fui! Boa prova. Que prova? Não força... Mal aí, beijo e tchau!
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Eu usei as palavras que pude usar. Eu disse o que sinto e o que penso. Como sempre fiz. Só não disse tudo. Como sempre... Há coisas que guardo só pra mim, não sei bem se por egoísmo ou por medo ou por ambos. Mesmo que, às vezes, fosse melhor compartilhá-las. Mas eu disse o que pude dizer. E olhei como pude olhar. E toquei como pude tocar. Nem o toque, nem o olhar, nem o dito foram como quis, apenas como pude. Não sem alguma dificuldade. Meu coração se debatia e contorcia num ritmo desenfreado e fora do normal. O tremor começava na espinha e percorria cada célula até as extremidades mais extremas do meu corpo. Confesso que foi uma espontaneidade forçada, a princípio, mas aos poucos evoluiu para uma naturalidade espontânea, ainda que um pouco doída. Uma dorzinha surda e persistente, leve porém incômoda apenas por ser dor. Por causa daquela falta de calor. Não chegava a ser frieza, apenas a ausência daquele calor confortável e acolhedor que parece ter deixado de existir. Uma presença levemente ausente, como encarar alguém através de uma cerca de arame farpado. Está ali, mas é inatingível. E ainda que o sol ultrapasse os trinta e muitos graus, só o que senti foi a falta de calor. Do nosso calor. Do meu calor. Pois, devo confessar, eu mesmo não fui eu mesmo. Não completamente. Não como quis. Apenas em partes. Apenas como pude. E é isso que serei. E é isso que farei. O que puder. Tudo, mas apenas como puder. Com tudo que eu tiver disponível de mim mesmo. Um tudo que eu mesmo já não sei o quê ou quanto é. Menos ainda quanto será. Mas, pouco a pouco, eu reencontro algo desse tudo, até que tudo volte a ser tudo de novo, completo. Mas, por enquanto, infelizmente, serei apenas o que puder. Mas serei. E estarei. E farei. Sempre. Pois, afinal, tudo isso sou eu, ainda que eu não seja tudo isso...
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Me desculpe, não foi de propósito. Eu sei, não estou te julgando por isso. Mas mesmo assim, sinto muito. Eu também sinto. Não era pra ser assim... Talvez fosse, quem sabe?... Eu sei, não era pra ser assim. Queria poder acreditar nisso. Eu também, por isso repito pra mim mesmo todo dia. E funciona? Até agora, não... Então, por que insiste nisso? Porque eu quero acreditar nisso. Por quê? Porque a pequena ilusão de que poderia ter dado certo é muito menos dolorosa que a certeza de que estava fadado ao fim. Mas eu nunca disse isso. Ninguém disse, mas mesmo assim não quero sequer considerar essa possibilidade. Mas não deixa de ser uma possibilidade... Deixa sim. Você e seu otimismo... Eu e meu realismo, você diz. Que raio de realismo é esse? O realismo de que as coisas são feitas pra dar certo, e não pra falhar. Então por que dá errado? Porque somos humanos e estamos condicionados ao erro. Então, de qualquer forma, ia fracassar. Talvez, mas se não sucumbíssemos ao erro, teria dado certo. E como não sucumbir ao erro? Se eu soubesse, não estaríamos tendo essa conversa. Faz sentido... Pois é... E agora? Não sei, e agora? Não sei... Pois é, então me vou. Já? Já, preciso ir. Por quê? Não sei, mas preciso... E vai pra onde? Não sei, mas vou... Hum... É, desculpe ser tão vago, mas é essa a verdade, eu não sei... E você volta? Eu estarei aqui. Mas você disse que estava indo. E estou, mas estarei aqui. Até quando? Não sei... Hum... Pois é, me vou então... Tá... Beijo e fica com Deus. Te amo. Também... Tchau...
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Confesso que, por um momento, tive medo de escrever. Me disseram que tudo que eu escrevesse seria interpretado segundo os olhos do leitor. E eu, apesar de viver a minha vida do meu jeito, me preocupo um bocado com a forma como me interpretam. Tenho medo de ser mal interpretado. E, pra ser muito sincero, às vezes, muitas delas, na verdade, eu mesmo não entendo exatamente o que está ali. Vejo várias interpretações pra uma mesma imagem, ou vejo nada. Mas também me pediram que eu continuasse a escrever como sempre escrevi, do meu jeitinho. Acho que isso quer dizer que devo viver minha vida sem medo de como irão me interpretar. Mas é difícil, muito difícil... Confesso que quase me calei, quase não escrevi. Mas, num impulso que talvez devesse ser refreado, eu escrevi. Aliás, vários impulsos eu deveria ter refreado, mas esse excesso de autenticidade e espontaneidade e naturalidade sempre me quebra as pernas. E, ainda que, depois, eu me arrependa e fantasie inúmeras formas de não dizer aquilo que já havia sido dito, bem lá no fundo, eu sei que isso é inevitável, pois sou um péssimo mentiroso. E esconder coisas também não é nada saudável. Elas surgem, em algum momento. Elas sempre surgem. Por isso, de alguma forma, gosto mais da verdade. Ainda que, às vezes, ela seja um bocado dolorosa, pois ela me deixa mais livre, pra que eu possa continuar a ser eu mesmo, pra que não precise planejar um fingimento e possa preservar esse meu jeito meio eu de ser. Ainda que esse jeito seja meio torto, um pouco mais do que eu gostaria...