Short Stories

Segunda-feira. Dia mundial da preguiça, dizem alguns. E lá estava ela, com aquela expressão cansada e abatida. Mais um serão à beira daquele leito. Há tantos anos que já perdera a conta. Há tantos dias que sequer sabia que era segunda-feira. Aquela parecia a rotina de uma vida inteira. Deixara de lado os próprios sonhos e desejos para se dedicar àquela causa. Dedicara a própria vida ao desempenho daquela função. Não podia evitar. Não podia fugir. Era tanto amor, que aquela dedicação e sacrifício eram realizados com satisfação. Embora aquelas olheiras fundas, aquelas rugas expressivas e aqueles olhos de pouco brilho denunciassem o cansaço e a fadiga, suas atitudes sempre demonstravam firmeza e vontade. Suas mãos, seguras do que faziam, recusavam-se a apresentar qualquer tremor, por menor que fosse. Sabia que aquela estabilidade era o que mantinha tudo ao seu redor em pé, sólido. Sabia que não podia faltar. Falhara muitas vezes, mais até do que gostaria de admitir. Mas faltar, nunca. O que não sabia, era quando. Até quando. Era certo que, em algum momento, aquilo teria um fim. E ela sabia que estaria presente para vê-lo. Mas evitava pensar naquilo. Não por medo, pois a certeza de que um dia viria dava-lhe forças para não temer. Mas porque sua única insegurança era o depois.

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Desceu a escadaria e deparou-se com a porta. Aproximou a mão da maçaneta, mas estacou antes de tocá-la. Tremia feito vara verde, como diria sua avó. O suor frio que brotava em sua fronte fez perceber que ainda não era hora. Ainda não era capaz de confrontar aquilo. Há três meses não saía de casa. Três longos meses. Três intermináveis meses. Três malditos meses. Noventa e sete dias, mais precisamente, contados um a um, quase uma hora de cada vez. Dessas duas mil trezentas e vinte e oito horas, dormira menos de quatrocentas. Trezentas e oitenta e oito, mais precisamente, essas sim, contadas uma de cada vez. E vinte e sete minutos. Era a quinta vez que tentava sair. Naquele dia, apenas. Ao todo, foram novecentas e sessenta e duas tentativas ao longo daquelas treze semanas. Em todas elas, o processo se repetia. Tinha certeza de que aquela seria a definitiva, quando ainda estava no alto da escadaria. No meio, acreditava que seria capaz. No último degrau, rente ao solo, achava que conseguiria. Frente à porta, temia não conseguir. E quando buscava a maçaneta, sabia que voltaria atrás. E assim, baixou a mão e voltou à escadaria. Quem sabe o nonagésimo oitavo dia traria novas forças...

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Acordou atrasado. Olhou o relógio e vociferou algumas expressões pouco educadas. Levantou num salto, ignorou aquela sensação vertiginosa e dirigiu-se ao banheiro. Uma chuveirada rápida e a primeira roupa limpa serviu como vestimenta. Um pão na boca e um chiclete no bolso, pegou uma lata de suco e a chave do carro, levando a gravata em torno do pescoço, à espera do nó. Conferiu o relógio do carro e cosntatou que ainda tinha tempo de não se atrasar. Se o trânsito permitisse. Aliás, se o trânsito todo estivesse daquele jeito, conseguiria chegar cedo, até. Aliás, naquele horário, daquele dia, era de se estranhar aquele trânsito tão livre. Ao ligar o rádio, desatou a rir quando ouviu o locutor celebrar o feriado. E então constatou que um despertador não toca quando não está programado para tal. Pensou no que fazer. Praia não era uma opção, muitos provavelmente já estavam a caminho. Não gostava de shoppings e o campo era muito longe. Resolveu então fazer algo que há muito planejava, mas nunca tinha tempo de fazer. Uma visita que há muitos anos desejava. Dirigiu seu carro até a praça mais próxima. Pegou o celular, e desligou-o. Deixou a gravata no banco do passageiro, desabotoou metade da camisa e subiu as mangas. Pegou aquela toalha esquecida no banco de trás e então saiu do carro. Estendeu-a no gramado e deitou-se sobre ela. E, finalmente, pôs-se a ouvir os próprios pensamentos.

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Quantas vezes já te disse pra fechar a porta do carro com cuidado? Menos do que me mandou arrumar o quarto. Algum dia você vai deixar de ser um adolescente respondão? Algum dia o senhor vai deixar de ser um chato implicante? Quem sabe no dia em que eu deixar de ser seu pai. Ok, temos uma data marcada, então, você deixa de ser chato e eu deixo de ser adolescente. E quando vai deixar de ser respondão? Quando o senhor deixar de ser implicante. Nunca, então... Parece que sim... Estudou pra prova hoje? Não tenho prova hoje. Estudou pra prova hoje? Não tenho prova hoje, já disse. Estudou pra prova hoje? Mas que coisa, como você sabe que tenho prova hoje? Não sei, mas você sempre se entrega na terceira vez que pergunto. Droga! Olha a boca! Desculpe. E então, estudou ou não? Quase... Como, quase? Só faltou uma coisa pra eu estudar pra prova de hoje. O quê? Lembrar de qual matéria é a prova... O QUÊ? Ah pai... Ah pai o escambau! Olha a boca! Não me remeda! Desculpa... Como alguém não lembra de qual disciplina vai fazer prova? Ah, sabe como é, né... Não, não sei, me explica. Ah pai, é complicado, né! O que é complicado? Ah, sei lá... Sei lá, o quê? Ah, muita coisa pra pensar, né... Como que alguém que só estuda tem muita coisa pra pensar? Ah, bom, tem a fome na África, a seca no Nordeste, a neve na calota solar. Polar. Ou isso, muita coisa pra pensar, sabe como é, né... Não, não sei, e às vezes acho melhor nem saber. Credo pai!... E o que vai fazer com a prova hoje? Ah, sei lá... Sei lá, como? Pô pai, quanta pergunta! E nenhuma resposta, né?! Relaxa, pai, eu dou um jeito. Você sempre dá um jeito, e isso me preocupa... Qualé, o senhor nunca foi chamado na escola! Pois é, mas não se se é porque você é um bom exemplo, ou um bom mentiroso... Pô pai, não confia na educação que me deu? Na educação eu confio, só não confio no uso que você faz dela. Faz sentido... Pois é. Pára aqui, vou descer na esquina. Por quê? Preciso de um chiclete. Chiclete? Sim, chiclete. Sei... Qualé, juízo eu tenho, viu! Então vê se usa! Pô pai... Pronto, tá entregue. Valeu, até mais tarde. Vai com Deus, te amo. Também, fui! Boa prova. Que prova? Não força... Mal aí, beijo e tchau!

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Eu usei as palavras que pude usar. Eu disse o que sinto e o que penso. Como sempre fiz. Só não disse tudo. Como sempre... Há coisas que guardo só pra mim, não sei bem se por egoísmo ou por medo ou por ambos. Mesmo que, às vezes, fosse melhor compartilhá-las. Mas eu disse o que pude dizer. E olhei como pude olhar. E toquei como pude tocar. Nem o toque, nem o olhar, nem o dito foram como quis, apenas como pude. Não sem alguma dificuldade. Meu coração se debatia e contorcia num ritmo desenfreado e fora do normal. O tremor começava na espinha e percorria cada célula até as extremidades mais extremas do meu corpo. Confesso que foi uma espontaneidade forçada, a princípio, mas aos poucos evoluiu para uma naturalidade espontânea, ainda que um pouco doída. Uma dorzinha surda e persistente, leve porém incômoda apenas por ser dor. Por causa daquela falta de calor. Não chegava a ser frieza, apenas a ausência daquele calor confortável e acolhedor que parece ter deixado de existir. Uma presença levemente ausente, como encarar alguém através de uma cerca de arame farpado. Está ali, mas é inatingível. E ainda que o sol ultrapasse os trinta e muitos graus, só o que senti foi a falta de calor. Do nosso calor. Do meu calor. Pois, devo confessar, eu mesmo não fui eu mesmo. Não completamente. Não como quis. Apenas em partes. Apenas como pude. E é isso que serei. E é isso que farei. O que puder. Tudo, mas apenas como puder. Com tudo que eu tiver disponível de mim mesmo. Um tudo que eu mesmo já não sei o quê ou quanto é. Menos ainda quanto será. Mas, pouco a pouco, eu reencontro algo desse tudo, até que tudo volte a ser tudo de novo, completo. Mas, por enquanto, infelizmente, serei apenas o que puder. Mas serei. E estarei. E farei. Sempre. Pois, afinal, tudo isso sou eu, ainda que eu não seja tudo isso...

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Me desculpe, não foi de propósito. Eu sei, não estou te julgando por isso. Mas mesmo assim, sinto muito. Eu também sinto. Não era pra ser assim... Talvez fosse, quem sabe?... Eu sei, não era pra ser assim. Queria poder acreditar nisso. Eu também, por isso repito pra mim mesmo todo dia. E funciona? Até agora, não... Então, por que insiste nisso? Porque eu quero acreditar nisso. Por quê? Porque a pequena ilusão de que poderia ter dado certo é muito menos dolorosa que a certeza de que estava fadado ao fim. Mas eu nunca disse isso. Ninguém disse, mas mesmo assim não quero sequer considerar essa possibilidade. Mas não deixa de ser uma possibilidade... Deixa sim. Você e seu otimismo... Eu e meu realismo, você diz. Que raio de realismo é esse? O realismo de que as coisas são feitas pra dar certo, e não pra falhar. Então por que dá errado? Porque somos humanos e estamos condicionados ao erro. Então, de qualquer forma, ia fracassar. Talvez, mas se não sucumbíssemos ao erro, teria dado certo. E como não sucumbir ao erro? Se eu soubesse, não estaríamos tendo essa conversa. Faz sentido... Pois é... E agora? Não sei, e agora? Não sei... Pois é, então me vou. Já? Já, preciso ir. Por quê? Não sei, mas preciso... E vai pra onde? Não sei, mas vou... Hum... É, desculpe ser tão vago, mas é essa a verdade, eu não sei... E você volta? Eu estarei aqui. Mas você disse que estava indo. E estou, mas estarei aqui. Até quando? Não sei... Hum... Pois é, me vou então... Tá... Beijo e fica com Deus. Te amo. Também... Tchau...

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Confesso que, por um momento, tive medo de escrever. Me disseram que tudo que eu escrevesse seria interpretado segundo os olhos do leitor. E eu, apesar de viver a minha vida do meu jeito, me preocupo um bocado com a forma como me interpretam. Tenho medo de ser mal interpretado. E, pra ser muito sincero, às vezes, muitas delas, na verdade, eu mesmo não entendo exatamente o que está ali. Vejo várias interpretações pra uma mesma imagem, ou vejo nada. Mas também me pediram que eu continuasse a escrever como sempre escrevi, do meu jeitinho. Acho que isso quer dizer que devo viver minha vida sem medo de como irão me interpretar. Mas é difícil, muito difícil... Confesso que quase me calei, quase não escrevi. Mas, num impulso que talvez devesse ser refreado, eu escrevi. Aliás, vários impulsos eu deveria ter refreado, mas esse excesso de autenticidade e espontaneidade e naturalidade sempre me quebra as pernas. E, ainda que, depois, eu me arrependa e fantasie inúmeras formas de não dizer aquilo que já havia sido dito, bem lá no fundo, eu sei que isso é inevitável, pois sou um péssimo mentiroso. E esconder coisas também não é nada saudável. Elas surgem, em algum momento. Elas sempre surgem. Por isso, de alguma forma, gosto mais da verdade. Ainda que, às vezes, ela seja um bocado dolorosa, pois ela me deixa mais livre, pra que eu possa continuar a ser eu mesmo, pra que não precise planejar um fingimento e possa preservar esse meu jeito meio eu de ser. Ainda que esse jeito seja meio torto, um pouco mais do que eu gostaria...

O Espelho

Espelhos. Era esse seu fascínio. Desde que se entendia por gente. Sempre os admirava, ainda que à distância. Via seu reflexo naquelas lâminas de vidro e surpreendia-se com a mágica que se ocultava por detrás delas. Todos seus movimentos, copiados porém invertidos com uma perfeição incrível. Incompreensível, a seu ver. Ainda em tenra idade, detinha-se por horas a fio a observar a própria imagem refletida, a interagir consigo mesmo com gestos, saltos, danças e tudo mais que pudesse fazer. No começo, incomodava-se com o silêncio do seu eu invertido, mas com o tempo acostumou-se, e passou até a gostar. Aquela companhia silenciosa permitia que se concentrasse nos próprios pensamentos, que viajasse para dentro das próprias idéias e sentimentos e aprendesse um pouco mais sobre si mesmo. Surpreendentemente, não era tudo que o fascinava. Vidros e pratarias e qualquer outra coisa que refletisse sua imagem eram apenas um reflexo qualquer, apenas uma cópia sem vida. Mas os espelhos não. Havia algo de diferente neles. Havia algo de... mágico. De místico. De fantástico. Tanto que nunca tivera coragem de tocá-los.

Não sabia dizer o porquê, mas nunca tivera coragem de tocá-los. Vontade tinha. Muita vontade. Por vezes, aproximou sua mão até quase tocar, sentindo como se sua própria aura refletisse naquela camada vítrea e tocasse sua mão de volta. Em outros momentos, tinha a impressão de que aquilo que sensibilizava suas terminações nervosas provinha do próprio espelho, como se viesse de algo além daquela barreira. Pesquisou. E como pesquisou! Mas nada parecia esclarecer o suficiente. A física era muito fria, insensível. Conseguia compreender aquelas coisas complicadas sobre luz e reflexo e refração e tudo mais que tentavam explicar, e era capaz de visualizar tais conceitos em qualquer lugar onde visse seu reflexo. Exceto nos espelhos. Havia mais neles, algo com uma certa aura mística, envolvente, diferente. Mas, ao mesmo tempo, as explicações mitológicas também era questionáveis. Fantasiosas por demais, tornavam-se inacreditáveis. E insuficientes. Sabia que a verdade ia muito além do que se via, do que se lia, do que as pessoas julgavam saber.

Até o dia em que permitiu que a curiosidade e a sede de conhecer sobrepujassem o medo. E enfim aproximou-se do espelho. Levou a mão tão próxima quanto pôde, sem tocá-lo, ainda. Outra vez sentia aquela energia pulsada que tocava sua mão, sem saber se era a própria aura a refletir-se ou se era uma emanação sabe-se lá de onde. E então, lentamente, aproximou-se mais, até tocá-lo. Uma superfície sem temperatura, fria porém quente. Sólida como o chão que o sustentava, mas que parecia tão etérea quanto o ar que respirava. Era um toque que, ao mesmo tempo que não oferecia qualquer resistência, parecia impenetrável. Mas, tão lentamente quanto se aproximou, continuou a deslocar sua mão e, novamente surpreendemente, ela atravessou o espelho. Olhava o próprio antebraço, meio dentro, meio fora, como se fagocitado pelo próprio reflexo. Sentia o contato da lâmina de vidro refletora ao redor da pele, quase como se fosse água, mas aquela superfície não tremulava, não se perturbava com aquele contato. Do outro lado, sua mão sentia... nada. Não havia vento, nem calor, nem frio, nem nada. Trouxe-a de volta, e ela era tão mão quanto antes. E o espelho, outra vez, se comportou como se nada daquilo fosse com ele. Nem uma única ondulação em sua superfície. E assim, num impulso de curiosidade e irracionalidade, projetou-se num passo adiante, em direção ao espelho, e estacou após duas passadas, ainda de olhos fechados, sem saber o que acontecera.

Abriu-os lentamente e viu-se num plano diferente. Olhou para trás e viu-se refletido numa pequena parede sem limites definidos. Via-se de costas, com o pescoço voltado para trás a encarar os próprios olhos. Um perfeito reflexo. Ao fundo deste reflexo, via também o mesmo que vira diante de si, naquele plano diferente. Virou-se novamente para frente e observou novamente o que ali se encontrava. Nada. Ou tudo, não sabia definir. Aquela paisagem, que parecia tão vazia, ao mesmo tempo se mostrava tão plena que parecia não precisar de mais nada para existir. Ao alcance de seu braço, e até mesmo de sua vista, tudo parecia vazio. Tão vazio que o nada tomava forma e preenchia a si mesmo. Mas, além do que via e tocava, era como se soubesse, como se sentisse que havia mais. Divisava contornos, formas e paisagens que pareciam tão longínquas que quase podia tocá-las. E meio assim sem motivo, olhou para trás novamente.

E lá estava seu reflexo, devolvendo seu olhar. E então, virou-se de frente a ele. E, como que por mágica ou sabe-se lá o quê, seu reflexo desapareceu tão logo se pôs frente a frente com ele. Assustou-se e olhou para trás novamente e, para sua surpresa, encontrou aqueles olhos refletidos a lhe devolverem o olhar com a cabeça virada sobre os ombros. Estava a menos de um passo de distância. Sentia que, se desse uma passada para trás, atravessaria aquela parece e se encontraria novamente diante do espelho que confrontara anteriormente. Mas... não queria. Não era o que desejava. Gostava daquela vida, mas as possibilidades que agora se descortinavam à sua frente pareciam chamar seu nome. Sabia que aquilo que tivera antes não seria satisfatório o suficiente para que aceitasse retomar aquela vida de antes. Ainda encarando os próprios olhos no reflexo, observou o vazio que circundava ambos. Aquele vazio tão pleno que era capaz de satisfazer só por estar presente. Olhou adiante outra vez e admirou aquela imensidão de nada repleta de tudo que poderia viver. Encheu os pulmões e expirou lentamente enquanto dava o primeiro passo. Às suas costas, nem mesmo precisou olhar para saber que seu reflexo permanecia à mesma distância. Ou quase. Estranhamente, era como se sentisse que aquela parede ficara menos de um milímetro mais longe, mas ainda assim se afastara. Deu outros passos até senti-la quase dois milímetros mais distante. E então compreendeu que cada passo dado naquele mundo só o levaria à frente. Em direção aos mundos que sabia existir, ainda que não os pudesse ver. E assim, olhando para trás uma última vez com olhos de despedida, começou a caminhar, sentindo aquele mundo que um dia fora seu pouco a pouco mais distante. Não havia mais como voltar. O único caminho era aquele que seu nariz lhe apontava.

Lama

Foi quando começou a chover. Ele estava ali sozinho, a observar aquela paisagem vazia. Recebeu aquela chuva como uma benção. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, recebendo aquela água celeste como um bálsamo. E ali ficou, sabe-se lá por quanto tempo, a banhar-se nas lágrimas da natureza e pedir-lhe que lavassem as suas. Voltou novamente a olhar para aquela paisagem desoladora e então viu. Nada. Absolutamente, nada. Apenas um deserto descampado com pequenos tufos de uma relva rasteira, dura, de um verde opaco desvitalizado e odor desagradável. Ao longe a chuva compunha uma cortina cinzenta, densa, que quase parecia impenetrável, consoante com aquela paisagem quasimorta que encarava. Desde o começo soubera que aquela era uma possibilidade. Indesejada. Esquecida. Menosprezada. Mas não ignorada. Mesmo assim, arriscou-se e mergulhou. E assim desembocou naquele mundo, ainda sem saber exatamente onde era. Ao seu redor, aquela paisagem o paralisava. Temia. E tremia. Não conseguia distinguir se era frio ou qualquer outra etiologia. Aquela chuva de grossas e pesadas e molhadas e geladas gotas que lhe esfriavam a carne, enregelando-o até os ossos, mas parecia aquecer-lhe a alma, de alguma forma. Ao longe, não se sabe a que distância ou em que lugar ou por que razão, viam-se tênues feixes de luz. Era o sol que rasgava e penetrava aquela densa cortina plúmbea. Não iluminava nada em especial, apenas aquele mesmo solo árido revestido por escassas ilhas de lâminas gramíneas. Mas, por algum motivo, sentia vontade de andar em direção àqueles holofotes celestiais. Ao seu redor, aquelas mesmas gotas que lhe esfriavam o corpo e aqueciam o coração tocavam o solo num baque surdo, ritmado, formando pequenas crateras de lama que imediatamente se dissipavam num raso oceano que começava a se formar sob seus pés. Ao redor dos seus pés. Sobre seus pés. Pouco a pouco aquela lama sólida e lamacenta ganhava vantagem sobre ele, enquanto distraidamente admirava aquela paisagem. Foi quando tentou sair que notou. Aquela pegajosa camada retinha seus pés de tal forma que a força que empenhou naquela frágil vontade cedeu à resistência do lodo. Não se moveu, afinal. Encarou os próprios pés e suspirou. E desanimou. Olhou novamente à frente, e de repente aquelas ilhas de sol lhe pareceram tão distantes, tão inatingíveis... Cada célula do seu corpo parecia pedir-lhe que ali ficasse. Subitamente, teve vontade de deitar-se e deixar-se engolir por tudo aquilo que via. Pareceu-lhe confortável a idéia de permitir que aquela lama e aquela chuva e aquela paisagem o fagocitassem e junto com ele encobrissem tudo que o levara até ali. E cada organela de cada célula de cada órgão de cada sistema de seu corpo parecia desejar o mesmo. O lamaçal já lhe cobria os tornozelos e era com olhos opacos e sem brilho que observada as próprias pernas a se debaterem debilmente, qual um animal moribundo e agonizante num delírio de sobrevivência. E cada novo esforço, se é que se podia denominá-los como tal, parecia mais desprovido de vontade, como se aquele chão sedento de vida drenasse cada quântum de energia vital que ainda lhe restava. E embora seu corpo implorasse um repouso, suplicando que parasse ali mesmo, entregando-se à inércia à inépcia ao desalento e enfim declarasse o fim, algo ainda o mantinha em pé. Aquela estranha chuva que lhe esfriava até os ossos mas parecia aquecer algo mais íntimo, mais profundo. Já não sabia se chorava ou se era o céu a lhe lavar as dores e compor as lágrimas, que já não tinham aquele sabor salobro. Mas já não doía tanto assim. O frio anestesiara-lhe a carne. O calor aquecera-lhe a alma. E ainda que sentisse brotar dentro de si pequenos riachos de pranto, ainda que toda sua matéria lhe pedisse pouso, ainda que aquela paisagem lhe inspirasse o fim, continuava em pé, rijo, sólido. E aquela perna que então se debatia, entregue ao desalento, não cedeu à resistência e lenta porém gradualmente galgou altura até projetar-se fora daquela prisão lamacenta, para em seguida ganhar distância à frente e por fim mergulhar novamente naquele barro incapacitante. E apoiando-se no impulso de sobrevivência daquela primeira perna, a segunda também se elevou e projetou-se um pouco mais adiante. E assim foi, pé ante pé. Vagarosamente. Penosamente. Insistentemente. Não sabia para onde ia. Mas, mesmo assim, ia.