Foi quando começou a chover. Ele estava ali sozinho, a observar aquela paisagem vazia. Recebeu aquela chuva como uma benção. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, recebendo aquela água celeste como um bálsamo. E ali ficou, sabe-se lá por quanto tempo, a banhar-se nas lágrimas da natureza e pedir-lhe que lavassem as suas. Voltou novamente a olhar para aquela paisagem desoladora e então viu. Nada. Absolutamente, nada. Apenas um deserto descampado com pequenos tufos de uma relva rasteira, dura, de um verde opaco desvitalizado e odor desagradável. Ao longe a chuva compunha uma cortina cinzenta, densa, que quase parecia impenetrável, consoante com aquela paisagem quasimorta que encarava. Desde o começo soubera que aquela era uma possibilidade. Indesejada. Esquecida. Menosprezada. Mas não ignorada. Mesmo assim, arriscou-se e mergulhou. E assim desembocou naquele mundo, ainda sem saber exatamente onde era. Ao seu redor, aquela paisagem o paralisava. Temia. E tremia. Não conseguia distinguir se era frio ou qualquer outra etiologia. Aquela chuva de grossas e pesadas e molhadas e geladas gotas que lhe esfriavam a carne, enregelando-o até os ossos, mas parecia aquecer-lhe a alma, de alguma forma. Ao longe, não se sabe a que distância ou em que lugar ou por que razão, viam-se tênues feixes de luz. Era o sol que rasgava e penetrava aquela densa cortina plúmbea. Não iluminava nada em especial, apenas aquele mesmo solo árido revestido por escassas ilhas de lâminas gramíneas. Mas, por algum motivo, sentia vontade de andar em direção àqueles holofotes celestiais. Ao seu redor, aquelas mesmas gotas que lhe esfriavam o corpo e aqueciam o coração tocavam o solo num baque surdo, ritmado, formando pequenas crateras de lama que imediatamente se dissipavam num raso oceano que começava a se formar sob seus pés. Ao redor dos seus pés. Sobre seus pés. Pouco a pouco aquela lama sólida e lamacenta ganhava vantagem sobre ele, enquanto distraidamente admirava aquela paisagem. Foi quando tentou sair que notou. Aquela pegajosa camada retinha seus pés de tal forma que a força que empenhou naquela frágil vontade cedeu à resistência do lodo. Não se moveu, afinal. Encarou os próprios pés e suspirou. E desanimou. Olhou novamente à frente, e de repente aquelas ilhas de sol lhe pareceram tão distantes, tão inatingíveis... Cada célula do seu corpo parecia pedir-lhe que ali ficasse. Subitamente, teve vontade de deitar-se e deixar-se engolir por tudo aquilo que via. Pareceu-lhe confortável a idéia de permitir que aquela lama e aquela chuva e aquela paisagem o fagocitassem e junto com ele encobrissem tudo que o levara até ali. E cada organela de cada célula de cada órgão de cada sistema de seu corpo parecia desejar o mesmo. O lamaçal já lhe cobria os tornozelos e era com olhos opacos e sem brilho que observada as próprias pernas a se debaterem debilmente, qual um animal moribundo e agonizante num delírio de sobrevivência. E cada novo esforço, se é que se podia denominá-los como tal, parecia mais desprovido de vontade, como se aquele chão sedento de vida drenasse cada quântum de energia vital que ainda lhe restava. E embora seu corpo implorasse um repouso, suplicando que parasse ali mesmo, entregando-se à inércia à inépcia ao desalento e enfim declarasse o fim, algo ainda o mantinha em pé. Aquela estranha chuva que lhe esfriava até os ossos mas parecia aquecer algo mais íntimo, mais profundo. Já não sabia se chorava ou se era o céu a lhe lavar as dores e compor as lágrimas, que já não tinham aquele sabor salobro. Mas já não doía tanto assim. O frio anestesiara-lhe a carne. O calor aquecera-lhe a alma. E ainda que sentisse brotar dentro de si pequenos riachos de pranto, ainda que toda sua matéria lhe pedisse pouso, ainda que aquela paisagem lhe inspirasse o fim, continuava em pé, rijo, sólido. E aquela perna que então se debatia, entregue ao desalento, não cedeu à resistência e lenta porém gradualmente galgou altura até projetar-se fora daquela prisão lamacenta, para em seguida ganhar distância à frente e por fim mergulhar novamente naquele barro incapacitante. E apoiando-se no impulso de sobrevivência daquela primeira perna, a segunda também se elevou e projetou-se um pouco mais adiante. E assim foi, pé ante pé. Vagarosamente. Penosamente. Insistentemente. Não sabia para onde ia. Mas, mesmo assim, ia.
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