O Espelho

Espelhos. Era esse seu fascínio. Desde que se entendia por gente. Sempre os admirava, ainda que à distância. Via seu reflexo naquelas lâminas de vidro e surpreendia-se com a mágica que se ocultava por detrás delas. Todos seus movimentos, copiados porém invertidos com uma perfeição incrível. Incompreensível, a seu ver. Ainda em tenra idade, detinha-se por horas a fio a observar a própria imagem refletida, a interagir consigo mesmo com gestos, saltos, danças e tudo mais que pudesse fazer. No começo, incomodava-se com o silêncio do seu eu invertido, mas com o tempo acostumou-se, e passou até a gostar. Aquela companhia silenciosa permitia que se concentrasse nos próprios pensamentos, que viajasse para dentro das próprias idéias e sentimentos e aprendesse um pouco mais sobre si mesmo. Surpreendentemente, não era tudo que o fascinava. Vidros e pratarias e qualquer outra coisa que refletisse sua imagem eram apenas um reflexo qualquer, apenas uma cópia sem vida. Mas os espelhos não. Havia algo de diferente neles. Havia algo de... mágico. De místico. De fantástico. Tanto que nunca tivera coragem de tocá-los.

Não sabia dizer o porquê, mas nunca tivera coragem de tocá-los. Vontade tinha. Muita vontade. Por vezes, aproximou sua mão até quase tocar, sentindo como se sua própria aura refletisse naquela camada vítrea e tocasse sua mão de volta. Em outros momentos, tinha a impressão de que aquilo que sensibilizava suas terminações nervosas provinha do próprio espelho, como se viesse de algo além daquela barreira. Pesquisou. E como pesquisou! Mas nada parecia esclarecer o suficiente. A física era muito fria, insensível. Conseguia compreender aquelas coisas complicadas sobre luz e reflexo e refração e tudo mais que tentavam explicar, e era capaz de visualizar tais conceitos em qualquer lugar onde visse seu reflexo. Exceto nos espelhos. Havia mais neles, algo com uma certa aura mística, envolvente, diferente. Mas, ao mesmo tempo, as explicações mitológicas também era questionáveis. Fantasiosas por demais, tornavam-se inacreditáveis. E insuficientes. Sabia que a verdade ia muito além do que se via, do que se lia, do que as pessoas julgavam saber.

Até o dia em que permitiu que a curiosidade e a sede de conhecer sobrepujassem o medo. E enfim aproximou-se do espelho. Levou a mão tão próxima quanto pôde, sem tocá-lo, ainda. Outra vez sentia aquela energia pulsada que tocava sua mão, sem saber se era a própria aura a refletir-se ou se era uma emanação sabe-se lá de onde. E então, lentamente, aproximou-se mais, até tocá-lo. Uma superfície sem temperatura, fria porém quente. Sólida como o chão que o sustentava, mas que parecia tão etérea quanto o ar que respirava. Era um toque que, ao mesmo tempo que não oferecia qualquer resistência, parecia impenetrável. Mas, tão lentamente quanto se aproximou, continuou a deslocar sua mão e, novamente surpreendemente, ela atravessou o espelho. Olhava o próprio antebraço, meio dentro, meio fora, como se fagocitado pelo próprio reflexo. Sentia o contato da lâmina de vidro refletora ao redor da pele, quase como se fosse água, mas aquela superfície não tremulava, não se perturbava com aquele contato. Do outro lado, sua mão sentia... nada. Não havia vento, nem calor, nem frio, nem nada. Trouxe-a de volta, e ela era tão mão quanto antes. E o espelho, outra vez, se comportou como se nada daquilo fosse com ele. Nem uma única ondulação em sua superfície. E assim, num impulso de curiosidade e irracionalidade, projetou-se num passo adiante, em direção ao espelho, e estacou após duas passadas, ainda de olhos fechados, sem saber o que acontecera.

Abriu-os lentamente e viu-se num plano diferente. Olhou para trás e viu-se refletido numa pequena parede sem limites definidos. Via-se de costas, com o pescoço voltado para trás a encarar os próprios olhos. Um perfeito reflexo. Ao fundo deste reflexo, via também o mesmo que vira diante de si, naquele plano diferente. Virou-se novamente para frente e observou novamente o que ali se encontrava. Nada. Ou tudo, não sabia definir. Aquela paisagem, que parecia tão vazia, ao mesmo tempo se mostrava tão plena que parecia não precisar de mais nada para existir. Ao alcance de seu braço, e até mesmo de sua vista, tudo parecia vazio. Tão vazio que o nada tomava forma e preenchia a si mesmo. Mas, além do que via e tocava, era como se soubesse, como se sentisse que havia mais. Divisava contornos, formas e paisagens que pareciam tão longínquas que quase podia tocá-las. E meio assim sem motivo, olhou para trás novamente.

E lá estava seu reflexo, devolvendo seu olhar. E então, virou-se de frente a ele. E, como que por mágica ou sabe-se lá o quê, seu reflexo desapareceu tão logo se pôs frente a frente com ele. Assustou-se e olhou para trás novamente e, para sua surpresa, encontrou aqueles olhos refletidos a lhe devolverem o olhar com a cabeça virada sobre os ombros. Estava a menos de um passo de distância. Sentia que, se desse uma passada para trás, atravessaria aquela parece e se encontraria novamente diante do espelho que confrontara anteriormente. Mas... não queria. Não era o que desejava. Gostava daquela vida, mas as possibilidades que agora se descortinavam à sua frente pareciam chamar seu nome. Sabia que aquilo que tivera antes não seria satisfatório o suficiente para que aceitasse retomar aquela vida de antes. Ainda encarando os próprios olhos no reflexo, observou o vazio que circundava ambos. Aquele vazio tão pleno que era capaz de satisfazer só por estar presente. Olhou adiante outra vez e admirou aquela imensidão de nada repleta de tudo que poderia viver. Encheu os pulmões e expirou lentamente enquanto dava o primeiro passo. Às suas costas, nem mesmo precisou olhar para saber que seu reflexo permanecia à mesma distância. Ou quase. Estranhamente, era como se sentisse que aquela parede ficara menos de um milímetro mais longe, mas ainda assim se afastara. Deu outros passos até senti-la quase dois milímetros mais distante. E então compreendeu que cada passo dado naquele mundo só o levaria à frente. Em direção aos mundos que sabia existir, ainda que não os pudesse ver. E assim, olhando para trás uma última vez com olhos de despedida, começou a caminhar, sentindo aquele mundo que um dia fora seu pouco a pouco mais distante. Não havia mais como voltar. O único caminho era aquele que seu nariz lhe apontava.

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