Tudo começara muitos anos antes. Tantos que nem dava mais para contar. Uma história que se confundia com a própria vida daqueles dois personagens. A opressão e a submissão, porque toda passividade precisa de uma atividade. De um lado, aquele que recebia ordens, realizava desejos, acatava imposições e nunca se queixava. De outro, aquele que ordenava, e só. Desde o começo fora assim, até que a submissão se cansou de submeter-se quando passou a observar o mundo. Via cores e sabores, via formas e conteúdos. E quando tentou alcançá-los, percebeu as grades que a restringiam. Foi então que passou a observar o entorno de si e percebeu o que construíra: um mundo limitado, engaiolado, que, de repente, tornou-se intensamente sufocante. E foi por isso que tentou conversar.
Mas não soube quais palavras utilizar, visto que nunca precisara delas. Percebeu que sequer conhecia o som da própria voz. E, quando tentou pensar no que gostaria de dizer, notou que não sabia o que gostaria, quiçá o que dizer! E implorava com os olhos, mas a outra personagem não os via. Gemia súplicas que, quando ouvidas, eram rechaçadas com grunhidos agressivos e opressores. E, assim, pouco a pouco, minguou. Qual uma estrela que perde o brilho e pouco a pouco se retrai. E, qual uma estrela retraída, que armazena energia até que se torna incapaz de contê-la, explodiu como se fosse uma supernova. E foi então que aconteceu.
Naquele dia, tudo parecia diferente. O café parecia mais doce, percebeu aquele que oprimia. "Que café melado!" reclamou. "Eu gosto assim", ouviu, surpreso, ao perceber de onde vinha a voz. Achou por bem ignorar e seguiu seu caminho, deixando pelo caminho uma xícara meio vazia de café. Não sabia explicar se era a falta do estimulante matinal ou aquela voz surpreendente que afetara sua capacidade, mas o fato era que aquela manhã estava diferente. O trabalho tinha outro ritmo, o ar tinha outro odor e sentia-se a si mesma como uma pessoa diferente. E com essa informação ainda em processamento, dirigiu-se para o almoço em casa. Uma nova surpresa quando encontrou a outra sentada à mesa, já se alimentando. "E o meu prato?" perguntou. E um dedo de boca cheia apontou para a louça vazia que jazia sobre o outro extremo da mesa. "E a comida?" tornou a perguntar. E o mesmo dedo apontou para o fogão. "Não vai me servir?" oprimiu. Silêncio. E somente quando o conteúdo daquela boca foi deglutido, pôde ouvir um "Não" bruscamente interrompido por outra porção de alimento. Estupefato, sem saber o que fazer ou falar, dirigiu-se às panelas e inspecionou o conteúdo. "Sabe que não gosto disso", reclamou. Silêncio. Quis oprimir, quis agredir, mas sua boca abriu-se e fechou-se incapaz de articular uma resposta. Era como se aquele ar denso e pesado estivesse limitando-o. Sentia-se... oprimido. "Vou almoçar na rua", desafiou, e viu-se obrigada a cumprir quando só obteve silêncio como resposta. E aquela tarde transcorreu ainda mais estranha. Não sabia como agir ou reagir. O mundo parecia desafiá-lo e tudo parecia desconexo. E, enquanto voltava para casa ao término daquele dia que parecia combinado para confundi-lo, tentando reorganizar idéias que o deixavam cada vez mais confusa, a única coisa que conseguia pensar era que aquilo precisava acabar naquele mesmo dia! E acabaria.
Abriu a porta e entrou, resoluto, punhos cerrados e respiração bufante numa postura ameaçadora. E a última coisa que sentiu foi uma dor intensa na nuca. Despertou com a cabeça pendendo sobre o peito. Gemeu e tentou amaldiçoar, mas sua boca amordaçada não proferiu aquelas palavras. Quis se mexer, mas seus movimentos foram limitados por cordas em seus punhos e cotovelos e ombros e tornozelos e joelhos e quadris. Olhou em volta, já desesperado, e reconheceu o terraço do prédio onde vivia, parcamente iluminado pelas estrelas. "É ruim, não é?" ouviu, naquela voz que ainda lhe soava estranha, mas que já era capaz de reconhecer o dono. "As amarras, a mordaça, a postura imposta por outra pessoa. A incerteza e a insegurança de ter de obedecer e confiar naquele que supostamente possui uma força maior que a sua." E então sentiu o toque frio e arredondado de uma extremidade metálica. E paralisou-se, numa demonstração extrema do mais puro medo. Sentiu aquele toque se afastando e então ouviu novamente aquela voz, vinda de um lugar mais distante. "Pensa no inferno" foi a frase dita antes do disparo. E então ouviu-se aquele som de pólvora explodindo no cartucho de uma arma de fogo. Seguido de silêncio. Não sentira impacto. Não sentia sangue escorrendo. Não havia dor. Portanto... E então uma lágrima. E outra lágrima. Seguidas de outras dezenas que se ligavam umas às outras formando um fluxo contínuo de compreensão e arrependimento e dor e sofrimento. "Dói, não dói?" E o som daquela voz misturou um pouco de alívio e medo ao sabor daquelas lágrimas. "Imagine, então, uma vida inteira assim. Mas sem entender o que acontecia. Até finalmente sentir a ficha cair e a compreensão chegar. E então sentir a incapacidade de se libertar. Mas tudo tem um limite e eu fui até onde pude, até ter que escolher entre implodir ou explodir. Eu quis te matar hoje, mas não suportaria viver com seu cadáver na minha consciência. Eu quis me matar hoje, mas isso não resolveria meu problema. Por isso, antes que chegasse a esse extremo, eu resolvi me libertar. E por isso, eu estou indo embora." Sentiu as cordas que lhe prendiam os braços se afrouxarem. E, quando se virou, só teve tempo de ouvir um desejo de "Seja feliz" proferido por aquele anjo que se libertava do cativeiro.
Libertação
"Pensa no inferno" foi a frase dita antes do disparo. E então ouviu-se aquele som de pólvora explodindo no cartucho de uma arma de fogo.
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