Repaginando

"Preciso escrever..." repetia ele para seus próprios ouvidos, incessantemente. Há dias. Há muitos dias. Tantos dias que quase compunham anos. "Preciso escrever..." insistia ele, em frente à tela do computador com o cursor piscante do editor de texto. Estático, ele mais que o cursor, cujo único movimento era o piscar característico daquela ferramenta. Nada de muito preocupante, para pessoas em geral. Mas para um escritor, era um problema considerável. Quase dois anos. Há mais de metade desse tempo, a editora o pressionava por um novo best seller. E ele lá, tentando. Tentando. E tentando. Mas não conseguia. Faltava-lhe... Pois é, faltava-lhe tanto, que sequer sabia dizer o que lhe faltava. Mas sabia que faltava. E não encontrava. E sentava ali, diariamente, horas a fio, estaticamente, pulsando na mesma freqüência do cursor, produzindo tanto quanto uma abelha falecida. E então, preservando a rotina já estabelecida há tantos dias que compunham anos, levantou-se. "Espairecer e buscar inspiração" era o motivo que justificava para a própria consciência. Carteira de cigarros na mão e isqueiro no bolso. "Lá fora, o mundo é cheio e as idéias são vastas, quem sabe é hoje..." pedia ele, sabe-se lá a quem.

E, naquele dia, nem mesmo precisou ir longe. Logo ao sair do portão de sua solitária moradia, ainda acostumando-se à luz intensa daquele sol escaldante, a mão esquerda ascendia o filtro do cigarro até a boca enquanto a direita trazia o isqueiro. Sem saber uma causa ou razão que pudesse explicar o porquê, olhou naquela direção e viu. O polegar estacou em uma mão imobilizada a meio caminho entre o bolso e os lábios que prenderam o cigarro que escapou dos dedos. Estático, plenamente. Nem mesmo o pulsar do cursor o mobilizava. Mas, dessa vez, não havia apatia ou acinesia. Só o que havia era aquela visão. Cabelos longos e soltos. Não eram tão volumosos, mas desciam tal e qual a corredeira mansa de um riacho em paz. Lábios pequenos e intensos e olhos vivos e brilhantes. Cativantes. Uma simetria que beirava o fascinante e ultrapassava o maravilhoso quando os olhos percorriam todo aquele corpo em harmonia consigo mesmo. E então, ele viu. A si próprio. Aproximou-se dela com um discreto e quase inaudível "Com licença, tem fogo? Meu isqueiro acabou de acabar..." com uma expressão envernizada num sorriso tímido de quem se sente incomodado pelo incômodo que causa. "Desculpe, mas não fumo" foi a resposta, educada porém terminal. "Faz bem, fumar mata, dizem por aí... Mas não tem nem um fósforo de acender fogão? Preciso muito acender esse cigarro agora..." foi a resposta dada por uma face tão polida que brilhava aquela timidez meiga, sedutora e calculada. "Um momento, vou ver com a minha vó" replicou um olhar antes frio porém agora curioso. Foi e voltou em poucos minutos com uma caixa de poucos fósforos desculpando-se "Só tinha os de acender incenso, pode ser?" "Claro... Muito obrigado" foi o retorno de um rosto aliviado. "Você está bem?" perguntou ela, com sincero interesse. "Estou sim... Apenas um pequeno problema que tem me incomodado um pouco, mas espero resolver logo." "E eu posso ajudar em algo?" "Já está ajudando, na verdade. Eu só precisava de um motivo pra puxar assunto e meu problema seria você entrar pra pegar os fósforos e não voltar..." respondeu um sorriso de verniz lixado e honesta expressão amadeirada. E ela, sorrindo um sorriso de 'eu sabia', pede "Autografa meu livro?" "Como?" "Autografa meu livro? Você é aquele escritor, não é? Tá um pouco mais novo na foto, com todo respeito, mas é você, né?" Um suspiro e uma expressão de 'não é bem assim' e ele diz "Se quiser, eu autografo, mas a única coisa que eu escrevo são listas de supermercado e folhas de cheque sem fundo. Mas, pra um rosto tão bonito e angelical, fica difícil recusar um pedido desses." E ela, agora com uma vermelhidão crescente e ascendente a aquecer-lhe todo o rosto, pergunta "Mas não é você?" "Adoraria, mas não... Tenho que admitir que somos bem parecidos, e você não é a primeira que faz essa confusão, mas infelizmente não sou eu. Não tenho capacidade pra escrever tão bem assim..." respondeu ele como quem acredita em uma crença que começa a nascer em seu próprio pensamento. E, vendo-a esconder-se atrás do livro, rubra qual uma maçã madura, concluiu "Mas não se preocupe, não me incomodo. Gostaria de ser tão bom quanto ele, mas nem todos nascem com esse dom... Eu tenho outros, felizmente." "Sério? E quais são seus dons?" devolve ela, ainda hiperemiada acima do normal. "Não posso comentar em público e muito menos nesse horário... Se quiser, podemos ir pro meu quarto e eu te conto lá..." foi a resposta acompanhada de um sorriso de intenção pouco esclarecida. Uma expressão surpresa que tanto podia ser sincera quanto fingida respondeu "Que indecência! Fazendo uma proposta dessas pra uma moça de respeito no meio da rua!" E ele, com um sorriso agora debochado "Calma, anjo... Não quero ofender sua dignidade, mas não podemos falar de assassinatos em série em plena luz do dia, concorda?!" Uma gargalhada sonora, sincera. "É, tem razão... Aí fica meio arriscado. E, pelo visto, bom humor é outro desses dons, né?!" "O maior deles, talvez..." foi a resposta de um sorriso cativante recebida por um olhar cativado.

E, nesse momento, a mão direita devolveu o isqueiro no bolso e os dedos da esquerda pescaram o cigarro que ameaçava cair. Ainda via a projeção mental do seu próprio ser interagindo com aquela musa que sequer sabia quão inspiradora era. E, apesar de a verdadeira não ter acompanhado o deslocamento da criação onírica daquela mente divagante, aquele casal saiu dali em direção a 'outro lugar' para que pudessem 'se conhecer melhor', enquanto ele voltava para dentro de casa. Economizara um cigarro, mas usaria aquele cursor piscante como há muito não o fazia. Não acreditava em amor à primeira vista. Não acreditava em divindade. Não acreditava em muita coisa. Aliás, acreditava em nada. Mas não precisava acreditar. Nunca precisara. Desde sempre, fora um criador de crenças, e não um crédulo. E sabia que por isso era lido. E, mesmo sabendo que precisava repaginar-se, reinventar-se, renovar-se, não o fazia. Ao menos, não externamente. Estava sozinho. Ou melhor, era sozinho. Muito mais que um estado, aquela solidão era uma característica inerente, indissociável do seu ser. Por opção, pura e simples opção. Consciente, acredite se quiser. E, quando questionado se não sentia falta de viver uma vida, ele respondeu "Não, porque eu vivo várias vidas." E era assim que escrevia a própria história. Seu espírito era livre para viver quantas vidas quisesse. E seu corpo estaria sempre ali, pronto para transformá-las em sucessos literários.

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