Ponto zero

_ Jeferson...
_ Huum...
_ Jeferson, acorda...
_ Que...?
_ Jeferson! Ô Jeferson! Acorda!!!
_ Oi, pronto... o que é?
_ Vai, de verdade, acorda Jeferson. Não tenho muito tempo...
_ Tá, tá... tô acordado e... Pera lá, eu moro sozinho! Quem é você? QUEM É VOCÊ? SAI DAQUI OU EU VOU CHAMAR A POLÍCIA!!!
_ Jeferson...
_ SAI DAQUI!
_ Larga esse copo, Jeferson... você vai acabar se machucando...
_ QUEM É VOCÊ? QUEM É VOCÊ? O QUE VOCÊ QUER? SAI DAQUI AGORA!!!
_ JEFERSON! CALA A BOCA!!! Se liga, otário. Eu sou você, porra.
_ SAI DAQU... Ein? Como assim, você é eu?
_ Acende a luz, vai logo. Acende a merda da luz e olha pra mim, panaca.
_ Panaca é você, seu idiota. Quero mesmo olhar bem pra sua cara e... Ai caralho, que merda é essa?
_ Pronto. Viu? Tá satisfeito? Acredita agora?
_ Ai... meu... deus...
_ Isso, senta que é melhor. Mas fica acordado, por favor, vou sentar aqui também, ok? Devolve o copo no criado mudo antes que derrube, por favor...
_ Ah... tá... O que você... eu... ahn... porra...
_ Não, não é um sonho. Você tá bem acordado, eu acho. Facilita o processo, vai... Conversa comigo como se estivesse falando com outra pessoa mesmo, deixa de ser mané e esquece a questão dos pronomes. Entendeu?
_ Entendi. Acho. Não, na verdade, não entendi nada... O que tá acontecendo aqui?
_ Eu vim do futuro, Jeferson.
_ Tá de sacanagem, né?
_ Olha bem pra minha cara. Olha bem, de verdade. Vê se eu to com cara de quem ia brincar com isso.
_ Hum. É, eu reconheço essa cara... mas... Como assim? Quando? O que?
_ Vai, pergunta.
_ Perguntar o que?
_ O que você quer perguntar.
_ E como você sabe o que eu quero perguntar?
_ Eu sou você. É a pergunta que eu faria. Vai logo pra gente poder andar com isso...
_ Quem estava certo sobre a viagem no tempo?
_ Emmett Brown.
_ Sério?
_ Sim, o do filme. Doc Brown, do “De Volta pro Futuro”. Capacitor de fluxo e tudo mais...
_ Caralho...
_ Pois é, difícil de acreditar, eu sei. Mas vamos lá, precisamos conversar a sério agora.
_ Agora? De verdade? São quatro e meia da madrugada...
_ Sim, eu sei. E eu tô aqui exatamente por isso.
_ Pra me acordar?
_ É.
_ Hahaha...ha...ha... você tá falando sério...
_ Sim.
_ Por que?
_ Porque hoje é o ponto zero.
_ Ponto zero? Do que?
_ Do apocalipse zumbi.
_ O QUE?
_ Sim, aconteceu de verdade. Todo mundo achava que era só ficção e tals, mas na real era o prenúncio do caos que viria...
_ E por que aqui é o ponto zero?
_ Porque você vai se atrasar pro trabalho hoje e isso não pode acontecer.
_ Oi?
_ É. Olha, presta atenção e me deixa falar, ok? Hoje você vai sair pra trabalhar, mas vai ter uma pane no metrô. Como sempre. E daí, você vai se atrasar, de novo. Mas, antes de você chegar, vão te procurar pra pedir o relatório de custos de um projeto do laboratório de microbiologia e genoma da faculdade. Você não vai estar lá, vão deixar isso de lado e aprovar a implantação do projeto e é esse laboratório que vai criar o fungo causador do apocalipse zumbi.
_ Fungo?
_ É, uma variação super poderosa daquele que ataca formigas.
_ Caraca... quem diria...
_ É. Então, prosseg...
_ Mas calma, pera. Por que eu sou tão importante pra isso? Se vão procurar o relatório e eu não estarei lá, é só pegar na minha mesa. Todo mundo sabe onde ela fica.
_ Jeferson.
_ O que?
_ É sério isso que você tá falando?
_ Sim.
_ Você já viu a sua mesa?
_ Já, o que tem?
_ De verdade, você já olhou D-E-V-E-R-D-A-D-E pra sua mesa?
_ ... já...
_ Aquilo é o caos. A treva. Se um deus cai naquela mesa, ele cria outro universo a partir daquela bagunça...
_ Não é pra tanto também...
_ Quantos documentos você já perdeu por causa daquilo?
_ Ei, pode parar que isso já é exagero. Nunca tive problema com isso porque, mesmo sendo meio bagunçado, eu sei onde estão as coisas e resolvo tudo que me pedem e... para com essa cara, não me olha assim... Tá bom, eu admito, teve aquela vez do processo da centrífuga e...
_ Só esse?
_ É... só ess...
_ E a viagem do reitor?
_ Ah, mas esse foi culpa da menina da faxi...
_ Que limpou a mesa por causa do ninho de cupim que se formou ali. E o lançamento daquele livro, você lembra?
_ Ah, mas daí foi aquele copo de café que derrubaram em tudo e...
_ Que você derrubou. Seu copo de café.
_ Ah... é...
_ Eu sou você, Jeferson. Não adianta mentir pra mim.
_ É... que saco...
_ Se já entendeu a sua importância, então pode levantar e começar a se aprontar.
_ Mas agora?
_ Sim.
_ Tá cedo...
_ Jeferson, qual parte de ponto zero você não entendeu? A civilização como nós a conhecemos depende de você, Jeferson. Agora, nesse momento.
_ De mim?
_ Sim.
_ Mas, sério? Eu?
_ É, você...
_ Mas porra... eu sou só um analista de processos internos, tipo, nem cargo de confiança eu tenho nem nada, sou a ralé da ralé da ralé lá na faculdade...
_ Você sempre quis fazer algo importante pelo mundo.
_ É, sim, mas tipo... era fantasia, né? Coisa de imaginação, livro e tals...
_ Pois então, chegou sua hora de brilhar, Jeferson. Nossa hora de brilhar.
_ ...
_ Levanta a cabeça, princeso, senão a coroa cai. Vai, tenha coragem, você é a única esperança do mundo.
_ Ah cara... não sei... se é assim, por que você, digo, eu, digo, sei lá... por que eu/você foi o escolhido pra viajar no tempo e trazer essa mensagem? Isso deve ser trote...
_ Porque achamos que você ouviria a si mesmo.
_ Ah vá. Parou a brincadeira vai... ninguém me dá ouvidos. Se é sério esse papo, por que não mandaram o Jorge do recrutamento?
_ O Jorge morreu na explosão do laboratório... por isso...
_ Eita... que coisa... e a Adelaide, do financeiro? Ela tem moral lá na faculdade...
_ ...
_ Que foi? Que cara é essa?
_ Era pra ela ter vindo.
_ Mas?
_ Ela morreu uma semana antes da viagem. Atacada por um bando de zumbis que conseguiu invadir nosso acampamento...
_ Ah... poxa... ela era legal...
_ Daí, sobrou pra você. Pra mim. Sei lá, você já tá me deixando confuso...
_ Poxa... desculpe... mas então...
_ Sim, você é a salvação do mundo.
_ Caralho.
_ Caralho.
_ E o que vai acontecer agora? Eu vou trabalhar, chego no horário, entrego o relatório e?
_ Não sabemos. É a primeira viagem no tempo bem sucedida que conseguimos. Vou descobrir quando voltar. Nossa esperança é que o Spielberg tenha acertado essa questão também e, quando chegar lá, o meu presente esteja corrigido.
_ Hum... Mas ei, pera lá. Se o filme tava certo, então você veio em um DeLorean?
_ Impossível encontrar um desse no meu tempo...
_ Então, qual carro foi usado?
_ Bom, entenda, precisávamos de um carro resistente e...
_ Vai dizer que foi um Fusca?
_ Não. Quer dizer, nós tentamos, mas não deu certo...
_ Como assim?
_ Não há carro mais resistente que um Fusca. Montamos tudo em um e fomos pra teste, igual no filme, tentamos mandar o carro pra um minuto no futuro, mas não deu certo...
_ O que aconteceu?
_ Não sabemos ao certo... o carro nunca chegou no minuto seguinte... O Bruno acha que foi por causa do fluxo do tempo.
_ Hã?
_ O Bruno defende a teoria de que o fluxo do tempo não é linear. É relativo. Einstein já falava isso, né? Daí, num fluxo não linear, há tendência de se formar turbulência e, com isso, o formato ovóide do Fusca favorece que ele seja tragado pela turbulência, ao invés de perfurar e atravessar diretamente. Enfim, não deu certo. Encontramos um outro carro mais adequado que funcionou perfeitamente no teste, um Gol quadrado.
_ Que? De verdade, um Gol quadrado?
_ Sim, 94, azulzinho, lindo.
_ Que bizarro isso...
_ É, eu sei. Mas precisávamos da aerodinâmica de linhas retas. Ele foi o melhor que conseguimos.
_ E quem tava no Fusca do teste? O que aconteceu? Fizeram o teste com um cachorro, igual no filme?
_ ... não...
_ O que foi?
_ ... era o Esteves...
_ Esteves, o chefe?
_ Sim...
_ E ele...
_ Encontramos uma escrita rupestre em uma caverna no Oriente Médio, assinada por ele, datada de 7200 a.C., mais ou menos...
_ CARALHO!
_ Pois é...
_ Bem feito, otário...
_ Jeferson, você tá perdendo o foco, cara. Volta pra cá, você precisa se arrumar e ir trabalhar, agora!
_ Ah, tá, bem lembrado...
_ Já são quase cinco horas, não perca mais tempo.
_ De boas, relaxa, já tô indo.
_ Posso confiar em você?
_ Porra cara, precisa mesmo dessa pergunta? Claro que pode.
_ Obrigado. Muito obrigado. Eu sabia que eu entenderia e aceitaria a missão... Posso voltar em paz agora.
_ Calma aê, pela janela? Sério?
_ Sim... Se eu sair pela porta agora, a vizinha do 71 já tá acordada. Ela não pode me ver saindo duas vezes, em dois horários diferentes...
_ Ah, aquela coisa de paradoxo e tals...
_ Não. Ela é uma enxerida sem limite e vai inventar alguma coisa pra esgotar nossa paciência. Prefiro economizar.
_ É, justo... Acho que é um adeus, então?...
_ Te vejo no futuro. Me vejo no futuro. Porra, que merda... sei lá, só vai. Preciso estar em paz com minha consciência. Muito obrigado.
_ Vai lá, cara... Obrigado pela confiança também... Rapaz, e não é que o Golzinho é bonito mesmo?... Putz, já são cinco e dois... se vai ter pane no metro hoje, preciso sair em 15 minutos. Tomar banho correndo, comer na lanchonete em frente à faculdade e... Se eu for de Uber, dá pra sair sete e meia. É, é isso. Vou dormir mais um pouco e depois vou de Uber. Acho que o salvador da humanidade merece essa folguinha hoje...


Trinta anos depois...
_ Ele voltou!!! Finalmente, esses cinco minutos pareceram uma eternidade... E então, como foi com o Jeferson do passado?
_ Ufa... não parece, mas essa viagem é cansativa... Foi tudo bem, ele entendeu e aceitou, deu tudo certo, tenho certeza. E aqui, como estão as coisas? O que mudou?
_ ... nada...
_ Como assim?
_ Tá tudo exatamente igual...
_ É sério?
_ Sim... talvez tenhamos que esperar mais um pouco...
_ Ou então...
_ O que?
_ O Akira Toriyama tava certo.
_ Quem?
_ O do Dragon Ball...
_ E isso seria?
_ Quando eu voltei no tempo e mudei a história, aquele ponto criou uma nova linha do tempo. A história foi reescrita, mas a partir daquele momento em uma linha paralela. As mudanças não vão ser refletidas aqui...
_ Não...
_ ...
_ Jeferson, isso não pode ser verdade...
_ Mas pelo visto, é.
_ Mas a pintura do Esteves...
_ Eu não sei, não consigo pensar em outr... ai, que dor de cabeça...
_ O que houve? Jeferson?
_ Minha cabeça, tá doendo... muito... aaaaaaahhhhhhhhhhh um chocolate, por favor, me dá um chocolateeeeeeeAAAAAAAAAHHHHHHHH
_ Rápido, alguém arruma um pedaço de chocolate, rápido!!!
_ AAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHH MINHA CABEÇA VAI EXPLODIR SOCORRO AAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH
_ RÁPIDO SEUS IMBECIS ALGUÉM TRAGA UM CHOCOLATE AGORA!!!!!!!!
_ Ah...ah... ufs... tá melhorando... Ah, obrigado... nhum... nossa, que alívio...
_ Você tá bem? O que houve?
_ Não sei, foi uma dor repentina e... espera... Eu não lembrava disso e... Novas lembranças! É isso! Essa dor eram novas lembranças se formando e... não... não acredito...
_ Novas lembranças? Sério? E aí? O que aconteceu? Fala Jeferson, fala logo!!!
_ ... droga...
_ O que houve, pelo amor de todos os deuses???
_ Eu voltei a dormir e perdi hora, cheguei ainda mais atrasado...
_ PORRA JEFERSON!

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