As Crônicas da Vacilândia - O Pinto e Seu Ministro

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       A Revolução Silenciosa
       O Bolinho do Marechal
       O Rei, a Barata e Um Móvel Qualquer Pra Completar A Referência


E agora, vamos ao causo da semana:

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Esse trecho foi extraído do livro Nem Queria Mesmo – Memórias de um Primeiro Ministro, e conta sobre um dos mistérios mais misteriosos encontrados no folclore da Vacilândia, a lenda do Nãoaconteceunadaildo.


O folclore bocó é bastante rico. Em cultura e bobeiras, digo, lendas, pois em dinheiro, necas. Dentre as mais conhecidas estão A roupa invisível do Rei que não deixa ele nu, O xixi na cama que o Marechal não faz, O cofre do Rei com apetite infinito por moedinhas depositadas na fenda. Além destas histórias, repassadas de geração a geração na tradição bocó, há também algumas figuras mitológicas, como o Currupaco, um papagaio com os pés virados pra trás que persegue viajantes chatos que querem chegar na Vacilândia, impedindo que alcancem os portões do Reino. O Boitotó, um cachorro-bovino de pileque, digo, de fogo, que tem duas lanternas no lugar dos olhos e protege os postes daqueles que querem fazer xixi neles e tomar seu território. E uma das mais assustadoras de todas, apesar de eu não acreditar nisso, é o Nãoaconteceunadaildo, um fantasma que possui o corpo de uma pessoa e apaga sua memória, fazendo com que ela esqueça de coisas constrangedoras, digo, aleatórias e aja como se nada tivesse acontecido. Invejosos dissimulados que queriam ser primeiros ministros espalharam pelo Reino que isso é invenção minha, que não passa de uma desculpa pra me esquivar de assuntos constrangedores, mas isso é mentira. Essa é uma lenda passada de geração a geração desde o ano que vem, e eu mesmo não acredito nela. Mas, acreditando ou não, fui vítima deste fantasma uma vez.

Era um dia como qualquer outro na Vacilândia. Bocós bocolizavam. Rãs reclamavam. Nichos se pegavam. Cidadãos pagavam impostos. E Eu Primeiroministrava. E é até aí que me lembro. Fontes não muito seguras afirmam que, em determinada hora do dia, recebi uma mensagem de extrema importância, a qual deveria ser tratada com zelo e atenção, respeitosamente. Como bom Primeiro Ministro que sou, logicamente que assim o faria, se isso tivesse realmente acontecido. Mas não aconteceu nada.

Essas mesmas fontes dizem que, depois de analisar a informação e averiguar sua veracidade, convoquei uma assembleia extraordinária na Praça dos Três Patetas, na qual faria uma coletiva com todos os cidadãos bocós presentes para divulgar o que havia chegado em minhas mãos e, assim, sanar aquele problema da Vacilândia. Essas fontes contam, ainda, que Eu cheguei ao púlpito no centro da Praça, e comecei a discursar cansativamente, digo, eloquentemente, como sempre faço. Todos se deleitavam com minhas belas e sábias palavras enquanto Eu dizia que aquele aumento de impostos era absurdo, mas que era ordem do Rei, e não minha. Diziam também que Eu me defendia bravamente quando tentavam me acusar, dizendo que Eu tentava difamar o Rei porque queria tomar seu lugar, que todos estavam cientes e de acordo com o aumento de impostos porque, assim, todos ganhariam ímãs de geladeira novos, e que nunca haviam se queixado de nada. Isso talvez fosse verdade, realmente condiz com minha conduta habitual versar tão lindamente acerca das minhas qualidades e dos planos nefastos e obscuros do Rei, que todos eram incapazes de enxergar porque o amavam demais para tal. Talvez fosse, mas o fato é que nada disso aconteceu.

Em determinada hora, segundo esses relatos, depois de me ameaçarem, digo, me informarem que Eu deveria seguir adiante com a pauta e divulgar as informações que trazia, eu desmaiei. Claro que não me lembro disso, ninguém se lembra de um desmaio. Mas me lembro de acordar, minutos depois. Testemunhas afirmam que, instantes antes de eu desmaiar, viram o Ouvidor, que se encontrava ao fundo da plateia, passar o dedo sobre a garganta, num claro gesto de ameaça contra minha integridade física e minha magnífica jugular. Oras, isso seria um absurdo sem tamanho! Ninguém, em todo o Reino, seria capaz de ameaçar Minha Pessoa, o Primeiro Ministro, um dos cargos mais importantes da Vacilândia (depois de todos os outros trezentos e doze). E além disso, apenas Eu e a Carrasca Bocó tínhamos acesso à chave da guilhotina! Ele jamais conseguiria ferir meu pescoço. Mas esses mentirosos, digo, essas testemunhas dizem que, tão logo o Ouvidor fez esse gesto, eu "perdi os sentidos" (não entendi as aspas, mas foi assim que relataram). O que Eu me lembro, e isso realmente aconteceu, já que Eu me lembro, é de acordar com o Bobo Bocó "gentilmente" me estapeando, tentando me acordar.

– Mas o que é isso?!?! Que absurdo é esse???

– vossa ministreza teve um ataque de pelanca... – disse o Bobo.

– O quê? Quê disse?

– Desmaiou. vossa ministreza “desmaiou”. Melhor assim?

– Humpf. Bem melhor. O que houve?

– Nós que perguntamos. – disse ele – vossa ministreza chamou geral aqui, disse que ia fazer um pronunciamento, aí de repente teve um ataq...quer dizer, “desmaiou”.

– Eu? – respondi, começando a me sentir irritado. Aquela ausência de maiúsculas me incomodava profundamente. – Eu convoquei todos aqui? Pronunciamento?

– Sim, ministro. Aqui – disse ele, me estendendo uma folha de papel –, esses cartazes foram espalhados pelo Reino hoje pela manhã. Coisa sua, obviamente.

– Primeiramente, é Ministro. Segundamente, isso realmente parece ter saído do Meu Gabinete. Mas... é estranho, porque nada aconteceu.

– Como assim? – perguntou o Bobo – O “M”inistro convocou toda a população bocó por qual motivo, então? Os cartazes dizem que havia uma informação de suma importância que seria divulgada publicamente. E agora diz que não aconteceu nada?

– Sim – respondi, ignorando as aspas –, não aconteceu nada. Vocês não deveriam estar trabalhando, por sinal?

– Então, agora o ministrinho não quer falar o que aconteceu? – retrucou o Bobo.

– Vossa Ministreza está escondendo informações, é isso mesmo? – gritou alguém em meio à multidão.

– Nós queremos saber também! Temos direito a saber o que acontece em nosso Reino! – gritou outro.

Os ânimos começaram a se exaltar, e logo havia vários cidadãos gritando em minha direção. Olhei ao redor, não havia sequer um guarda costas a quem recorrer. Nossa polícia estava desmantelada, o Marechal estava em treinamento com todo o Exército Bocó, e os Paladinos estavam fazendo a guarda do Rei. Comecei a tentar controlar a multidão:

– Por favor, acalmem-se. Todos vocês, por favor, silêncio! – disse, cada vez mais alto, até perder de vez o controle e gritar – CHEGA, CARAMBOLAS! NÃO QUERO MAIS OUVIR UM PIU!

Então, todos se calaram, felizmente.

Piou.

– QUEM DISSE ISSO?????? – gritei em resposta. Aquilo era o cúmulo! Mas ninguém se manifestou. Em vez disso, ouvi novamente:

Piou.

Olhei para baixo, havia um pinto ao meu lado. Estranhamente, usava uma boina turpin. Tinha estilo, o pinto.

– Não entendi, poderia repetir, por favor.

Piou?

– Como? O que quer dizer?

Piou...

– É francês, Vossa Ministreza. – disse alguém no meio do povo.

– O quê?

– O pinto. É francês. – era o Povo falando.

– Ah, ta. – respondi – Poderia, por gentileza, fazer silêncio? – disse eu ao pinto – Estou tentando me entender com a população da Vacilândia.

Ele me olhou de volta, com olhar de compreensão. E calou-se. Incrivelmente, o pinto era mais respeitoso que aqueles ali reunidos.

– Obrigado. – respondi – Agora, por favor, podem me explicar o que está acontecendo aqui?

– Vossa Ministreza é quem deve explicar – disse o Povo – por que convocou tamanha lambança. Afinal de contas, o que aconteceu?

– Nada. Não aconteceu nada.

– Bom, algo deve ter acontecido, claramente. Senão, não teríamos sido convocados!

– Mas NÃO ACONTECEU NADA!

– Só tem uma explicação, então – disse outra voz. Olhei em sua direção, era a Duquesa da Irritácea. – Foi o Nãoaconteceunadaildo.

– Foi quem? – perguntei.

– O Nãoaconteceunadaildo. Um fantasma que causa esquecimento nas pessoas.

– Ora essa, Duquesa! Que absurdo é esse? Todos sabemos que isso é folclore, como o Currupaco!

Piou! – disse Le Pintô, indignado.

– Desculpe, Le Pintô, mas todos sabem que é lenda. – respondi – E esse Nãoseioquêildo aí, é tão lenda quanto! Francamente, Cristiane!

– Ah, então, é lenda? Pois então, senhor Primeiro Ministro, explique o que aconteceu!

– Oras, não aconteceu nada!

– Nada, é? Então por que esse circo todo?

– Olha...

– E por que o desmaio?

– Calma...

– E a falta de memória?

– Mas...

– E então, senhor Primeiro Ministro. Explique. O que aconteceu? Queremos saber!

– NÃO ACONTECEU NADA!

– ACONTECEU SIM! E foi um ataque do Nãoaconteceunadaildo! Tenho certeza disso, é a única explicação possível! E, infelizmente, nunca poderemos saber o que seria dito pelo Primeiro Ministro, pois o ataque desse fantasma é irreversível, causa esquecimento completo na cabeça de quem foi atacado...

– Bom, vendo por esse lado, fica claro que fui atacado pelo... como chama mesmo?

– Nãoaconteceunadaildo.

– Isso! Nãoseidasquantasildo! Fui atacado por ele, claramente. Pelo visto, não é apenas uma lenda, mas uma ameaça real!

– Sei não... to achando isso meio suspeito – disse o Bobo Bocó.

– Oras, mas o que o Bobo entenderia de um assunto tão sério? – respondi – Estarei colocando todo o empenho necessário para estar averiguando a verdade sobre essa entidade. A BIA estará sendo envolvida, o Ninja Bocó estará sendo convocado e as Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia estarão estando de prontidão para combatê-lo!

– E nós vamos continuar sem saber o que aconteceu? – disse alguém no meio da multidão.

– Não aconteceu nada. Quer dizer, aconteceu um ataque do Algumacoisaildo...

– Nãoaconteceunadaildo – interrompeu a Duquesa.

– Isso. – continuei – Foi tudo que aconteceu aqui, hoje. Agora, por favor, tomem seus devidos rumos. Circulando. Não tem nada pra ver aqui. Vamos, Le Pintô.

E assim, pela primeira vez na história da Vacilândia, tivemos um ataque presenciado do Nãoaconteceunadaildo. Meses depois, alguns cidadãos começaram até mesmo a dizer que viram o espectro tomar meu corpo na hora do ataque, mas que só compreenderam o que de fato aconteceu depois do acontecido. Nossos agentes investigaram exaustivamente, mas não se lembram de evidências dessa entidade, infelizmente. Todos os relatórios apontam que se esqueceram do que estavam investigando e das informações que encontraram e, com isso, a conclusão foi de que o Nãoaconteceunadaildo realmente existe, o que seria a única explicação para não se lembrarem de informações tão cruciais. Por outro lado, o índice de divórcios no Reino diminuiu drasticamente, pois cônjuges passaram a acreditar em seus parceiros e parceiras quando estes afirmavam que não tinha acontecido nada, que não se lembravam de nada. Era o Nãoaconteceunadaildo fazendo cada vez mais vítimas.

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