As Crônicas da Vacilândia - O Rei, a Barata e Um Móvel Qualquer Pra Completar A Referência

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Outros causos da Vacilândia:
       A Revolução Silenciosa
       O Bolinho do Marechal


E agora, vamos ao causo da semana:

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       Este trecho foi extraído do livro Nem Queria Mesmo – Memórias de um Primeiro Ministro, e relata o evento que ficou eternizado na história da Vacilândia como O Cerco das Baratas Assassinas Voadoras Malvadas.


Era uma noite de terça–feira bastante comum, exceto por uma exceção. Havia sido um dia de intensos debates no Departamento de Filosofia Bocó do Instituto Vacilândia de Ciências Bocozais, sobre a exceção da regra que diz que toda regra tem uma exceção. Ao final daquele debate enriquecedor e altamente infrutífero, do qual até mesmo o Rei e seu time de (pseudo)sábios haviam participado, nosso “querido” monarca convidou todos os envolvidos, outras figuras ilustres de nosso Reino e, logicamente, Eu, a acompanha-lo em um jantar de gala no Salão do Trono. E assim fomos todos.

Com as mesas dispostas em um formato aleatório, o Salão estava lindo! Ao redor do Rei, estavam a Rainhadrasta Jujuba e a Princefilha Malu, dividindo a mesa também com outros membros da “Realeza”, como a Duquesa da Irritácea e a Marquesa das Terras Assombradas da Chapada dos Vacileiros. Em outras mesas, convidados estrangeiros, como o Embaixador de Coalópolis, a ilustre Senhora Coala Bocó, o Ouvidor, o Povo e, logicamente, Eu. O Bobo Bocó animava nosso Salão, enquanto nosso adorado Barista nos oferecia diferentes drinks confeccionados com os melhores cafés imagináveis. Tudo corria em paz e diversão, até que o Rei Rafael I (e único) gritou igual uma iguana bêbada, digo, nos alertou para a existência de uma ameaça súbita que surgia repentinamente em nosso Salão.

– Nada temei, amados cidadãos bocós! – disse ele, erguendo-se e subindo na cadeira. – Eu os protegerei!

– Do quê? – perguntou uma voz em meio à multidão, nossa adorada guria coordenadora do Sistema de Atendimento ao Cidadão.

– Duas baratas acabam de adentrar nosso salão, – respondeu o Rei, sacando sua espada e passando da cadeira para a mesa, encarando de longe as baratas – Paladinos Bocós, vinde a mim! Juntos eliminaremos esta vil ameaça!

Olhamos todos na direção que ele indicava, onde pudemos vê-las. Duas. Enormes. Baratas. Felizmente, estavam na outra ponta do Salão, longe de onde as mesas estavam dispostas. A minha, pelo menos. Todos ficamos apreensivos, pois não sabíamos quais eram suas intenções. Começamos a nos afastar daquela direção, nos amontoando atrás das mesas, enquanto o Rei descia da mesa e, lenta e corajosamente (cof mentira cof), começava a caminhar em direção às baratas. Quando estava a cerca de dezoito metros delas, aconteceu o inesperado. A armadura casca grossa brilhante de uma delas se partiu ao meio, abriu-se em um movimento diagonal e, então, começamos a ouvir um zunido rápido, constante, enquanto suas patas começavam a se elevar do chão. Nesse exato instante, o Rei bradou:

– É VOADORA!!! CORRE CAMBADA!!! SALVE-SE QUEM PUDER!!!

E antes que pudéssemos entender o que se passava, a espada já estava no chão e o Rei cruzava as portas do Salão do Trono, seguido pelos Paladinos Gabriéis, o Silva e o Ramos. Eu, como bom Primeiro Ministro que sou, sempre “leal” seguidor de nosso “amado” Rei, não pensei duas vezes e corri logo atrás. E assim, num piscar de olhos, o Salão esvaziou-se e todos corriam em debandada, seguindo nosso Rei em direção à saída do Palácio.

Saímos pelas portas do Salão, meio atabalhoados, meio atropelados, mas felizmente ilesos. Seguimos pelo corredor central, em direção ao hall de entrada do Palácio, passando pelo corredor leste, que terminava no Salão do Sol Poente. Pouco após passarmos em frente ao Meu Gabinete, na ala norte, subitamente o Rei parou em frente à sala da Ouvidoria, que ficava na base da torre sul.

– Esperem! – gritou o Rei. Todos paramos e aguardamos seu pronunciamento – Onde estão a Rainhadrasta e a Princefilha???

Todos olhamos ao redor, mas ninguém parecia encontra-las.

– Bocojestade... – disse o Bobo.

– Senhor... – disse o Povo.

– Eita pleura, acho que elas ficaram no Salão! – disse Eu. Todos me olharam com olhar de censura, apenas por ter apontado o óbvio. Como se o próprio Rei já não tivesse percebido. – Mas não se preocupe, Vossa Bocojestade – continuei, tentando acalma-lo –, tenho certeza de que será rápido e elas sofrerão pouco...

Aparentemente não funcionou, pois os olhares de censura se intensificaram, e uma lágrima brotou no canto do olho do Rei. Alguns olhares começavam a transparecer fúria... Ingratos e insensíveis, apenas Eu tentava consolar o Rei.

– Tenho certeza, “amado” Rei, que tudo ficará bem. Elas são ágeis, certamente correram para outro lado e estão seguras. – O Rei parecia estar se acalmando, e os olhares de todos ao redor também – Só espero que aquelas monstruosidades não tenham ido atrás delas. Sabe, né?! Elas não vão ter dó de nenhuma das duas...

Novamente aqueles olhares de reprovação, totalmente desnecessários.

– Poupe-me de suas aspas, senhor Primeiro Ministro – disse-me ele, rudemente – Corajosos Gabriéis, apresentem-se! Precisamos voltar e enfrentar a encarnação do mal e salvar minhas adoradas damas!

Não houve resposta. Procuramos ao redor, e os Gabriéis não estavam visíveis em lugar algum. Pudemos ouvir passos na escada que subia a torre sul, e uma porta se trancando.

– Poxa, tudo isso porque paguei o bônus de natal em bocoletas, ao invés de francos. Ingratos! – resmungou o Rei. Em seguida, erguendo a voz como se estivesse apresentando um comício, bradou: – Cidadãos da Vacilândia! Seu Reino clama por sua força e seu amor! Preciso de voluntários para estar ao meu lado neste combate de morte certa!

No silêncio que se seguiu, podíamos ouvir o zumbido das asas daqueles seres trevosos, malévolos e asquerosos do outro lado do Palácio. E, vindo da direção oposta, aproximando-se de nós, ouvíamos também passos pesados batendo contra o chão, uma respiração ofegante e o som de uma barba grisalha crescendo. Viramos-nos na direção do som, e nosso adorado Marechal surgiu no corredor, acompanhado do Tenente Gabriel, o Outro Ramos, e dos cavaleiros do Contraditório e das Temporadas Perdidas.

– Eis que a esperança surge diante de meus olhos! – alegrou-se o Rei.

– Não... senhor... Rei... eu... é... não...

– Recupere seu fôlego, Marechal!

Depois de quinze minutos ofegante, o Marechal finalmente conseguiu dizer:

– A dona Esperança não pôde vir, ó Bocojestade, ela estava terminando uma torta de paçoca. Só viemos nós quatro. Eu...

– A esperança é a força que Vossa Militareza carrega em vossa farda, Marechal! – disse o Rei, interrompendo o Marechal. – Estávamos buscando um herói, digno de salvar a Rainhadrasta e a Princefilha das garras de terríveis monstros desalmados e cruéis!

– Quê? – perguntou o Marechal

– Minhas adoradas damas estão presas no Salão do Trono, reféns de duas baratas voadoras. É vosso dever, juntamente com as Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia, derrotar tais monstruosidades e resgatar minhas damas!

– É, então. Sobre isso... – disse o Marechal, um pouco hesitante – Antes de Vossa Bocojestade me interromper, eu ia dizer que deu ruim...

– Como assim, Marechal?

– Eu estava em meu saco-de-dormir-de-ficar-de-guarda, guardando os portões do Palácio, cumprindo meu turno da semana. De repente, fui acordado pelo sino de emergência de Bocó Street. Quando consegui sair do saco de dormir, já era tarde demais. Estávamos acuados, e nossa única alternativa foi correr e nos refugiar dentro do Palácio. Fomos invadidos, e estamos sitiados.

– Mas... como? E o povo da Vacilândia?

– O Povo está aqui, amado Rei.

– Não o Povo. Falo do povo, Marechal! Estão todos aqui, no Palácio?

– Ah, sim. Não. O povo se trancou em suas casas, todos correram a se esconder tão logo os invasores surgiram nos limites do Reino. Acredito que seu objetivo era tomar o Palácio de assalto, numa ação rápida e certeira, daquele jeito que nunca conseguimos defender nas simulações das Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia. Tomando o centro do poder, todo o Reino cairia sob seu domínio rapidamente.

– Mas... Quem está nos atacando? O exército da Certinholândia? A marinha das Terras Secas do Povo Sem Imaginação? Quem, Marechal? QUEM?

– São... baratas, senhor. Cinco, ao todo. E pelo menos duas delas são voadoras – respondeu o Marechal, em tom de desânimo e expressão abatida e cansada.

O Rei caiu de joelhos, sem esperança. Outra lágrima escorreu do outro olho. Todos sentimos o peso da dor, do fim. E o silêncio novamente se abateu naquele corredor. Antes que pudéssemos tentar amenizar aquele climão, ouvimos outro grito de iguana. Digo, outro brado forte e viril. Era Cris, a Engraçada, Duquesa da Irritácea, pálida e assustada, apontando em direção ao local de onde, minutos antes, o Marechal surgira.

– Ba... ba... ba...

– Francamente, Cristiane. – disse o Povo. – Barata. Fala direito. – e, voltando-se ao Rei e ao Marechal – Deu ruim. E agora?

Antes que pudéssemos reagir, aconteceu o que esperávamos: o inesperado. Algo que não poderíamos ter feito e que salvaria nossa vida. Tão logo começou a caminhar em nossa direção, aquele monstro foi grosseiramente esmagado por uma pilha enorme de planilhas impressas conjuradas do nada. Quando a poeira se dissipou, pudemos ver a Jéssicnífica Conduquesa de Fellas, Maga Bocólógica líder da Ordem da Excel-lência. Vestia seu manto planilhológico quadriculado de AA até BX, com uma longa cauda que se estendia até DP, e vinha acompanhada de seu fiel companheiro, Rocket, um cão elemental de fórmulas.

– Senti uma perturbação nas tabelas – disse a grande maga –, venho sentindo há tempos, na verdade. Sabia que algo ia acontecer. Minha bola de planilhas vinha indicando isso há semanas, mas não estava claro até hoje, quando a constelação de ALEATÓRIOENTRE(1;33) entrou na casa de B7 e, então, eu soube onde e quando deveria estar. Vamos, adiante!

Uma luz se acendeu! E Eu precisaria me lembrar disso no dia seguinte, pra cancelar o pedido de troca daquela lâmpada que, afinal de contas, não estava queimada. Enquanto tomava nota disso, a Conduquesa de Fellas veio em nossa direção, reergueu e animou nosso amado Rei e assumiu a liderança da comitiva do corredor, tomando o caminho que nos levaria de volta ao Salão Real. Como todos gostamos de uma boa treta, seguimos atrás, para assistir, digo, auxiliar no resgate das damas de nosso Rei. Estávamos nos aproximando do Meu Gabinete, na ala norte, quando a Conduquesa interrompeu a marcha:

– Alto! – bradou. E então, a segunda fera surgiu na outra extremidade do corredor.

Rocket rosnou e, em resposta, a fera abriu sua armadura casca grossa brilhante, preparando-se para um ataque. Antes que pudéssemos chorar, antes mesmo que a Maga das Planilhas conseguisse reagir, antes mesmo até que a monstruosidade começasse a levitar, a mesma se desfez em centenas de pedaços repentinamente. Caminhando sobre os restos mortais da fera, imponente, corajosa, sem nojo algum, vinha ela, a Kiravilhosa Rainhadrasta Jujuba, vestindo a famosa Armadura de Sete Véus (que só deixava o umbiguinho de fora) e portando a poderosa Espada do Ventre. Atrás dela, a Princefilha Malu, andando nas pontas dos pés e desviando como podia.

– Ó, minhas damas!– clamou o Rei, chorando de alívio – Minha filha querida! Minha adorada Jujuba! Estávamos a caminho do Salão do Trono para resgatá-las das garras destes terríveis monstros!

– Meu Rei querido! – respondeu a Rainhadrasta – Agradeço, mas a gente sabe se virar bem! Diga-se de passagem, a Princefilha Malu gritou muito menos que o senhor, meu adorado Rei!

Risadinhas de deboche foram ouvidas no corredor, mas o Rei não se importou. As damas estavam a salvo. Eu, como responsável Primeiro Ministro que sou, sempre preocupado com o bem estar geral da nação, quebrei o clima e perguntei:

– E quanto ao cerco, o que faremos?

– Que cerco? – perguntou a Rainhadrasta.

– O cerco de baratas. São cinco, segundo o Marechal, bloqueando as portas do Palácio. Duas voadoras, talvez mais...

– Cinco?... – disse ela, em tom de lamento – Uma eu encaro, mas cinco...

– Tudo isso? – perguntou a maga – Eu... o Rocket... é...

– Só nos resta uma opção. – disse o Rei, com a voz firme e segura, retomando a liderança da situação – Soltem o Zíper.

– O Zíper, senhor? – questionou o Marechal – Vossa Bocojestade se lembra do que aconteceu da última vez que o soltamos?

– Lembro. A batalha contra a Armada Felpuda. Ele nos salvou daqueles gatos, e é um herói por isso!

– Sim, senhor – retrucou o Marechal –, mas demoramos uma semana pra conseguir colocar a coleira nele e leva-lo de volta ao Canil Real. E mais um mês pra tirar todo o cheiro de xixi dos lugares por onde ele passou.

– Eu sei, Marechal. Mas é nossa última chance contra o cerco.

– Olha – interrompi –, detesto ser estraga prazeres – (cof mentira cof) –, mas acho que não vai rolar. O Zíper tá no pet... dia de banho, né...

– Putz, tinha esquecido. – reclamou o Rei – Então, só nos resta outra última esperança. Liguem para a Carrasca Bocó. Que ela libere nossas Feras Fofas.

– Senhor... – disse o Ouvidor – Sério mesmo? Da última vez que elas escaparam, foi uma chuva de reclamações na ouvidoria. Elas quebraram tudo que tinha no caminho. Foi pior do que quando o senhor comprou aquele tecido que apenas os inteligentes veem.

– O senhor Ouvidor gostaria de ir até lá resolver essa situação, então?

– Não, Bocojestade – respondeu o Ouvidor, cabisbaixo –, sou grande, mas não sou dois... Que seja feita a Vossa vontade, então.

– Por favor, faça as honras, já que é um alto falante – disse o monarca ao Ouvidor.

– Ô DEIA! SOLTE SUAS FERAS! – gritou o Ouvidor.

Em resposta, ouvimos, ao longe:

– O QUÊ?

– AS – gritou outra vez, pausadamente – FERAS.

– QUE QUE TEM? – ouvimos novamente a Carrasca respondendo.

– SOLTA!

– TEM CERTEZA?

– O REI MANDOU!

– TÔ SOLTANDO!

E então, pudemos ouvi-las. Com seu instinto feroz destruidor, sentiram o cheiro dos agressores do nosso Reino e partiram diretamente rumo ao Palácio, latindo escandalosamente entre diversão e combate. Mais tarde, naquela noite, depois que a Carrasca finalmente conseguiu recolher as Feras Fofas, não restava quase nada das baratas sitiantes. Sabíamos que as que não foram mortas por Acidente, foi Fatalidade. E depois de tantas emoções, todos nos recolhemos e deixamos pra contar o prejuízo no dia seguinte. Invejosos de plantão dirão que estou exagerando, que tudo não passa de ficção. Mas quem fecha com o bonde, e esteve no Palácio naquela noite, sabe que foi exatamente assim. Mais ou menos.

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