Repaginando

"Preciso escrever..." repetia ele para seus próprios ouvidos, incessantemente. Há dias. Há muitos dias. Tantos dias que quase compunham anos. "Preciso escrever..." insistia ele, em frente à tela do computador com o cursor piscante do editor de texto. Estático, ele mais que o cursor, cujo único movimento era o piscar característico daquela ferramenta. Nada de muito preocupante, para pessoas em geral. Mas para um escritor, era um problema considerável. Quase dois anos. Há mais de metade desse tempo, a editora o pressionava por um novo best seller. E ele lá, tentando. Tentando. E tentando. Mas não conseguia. Faltava-lhe... Pois é, faltava-lhe tanto, que sequer sabia dizer o que lhe faltava. Mas sabia que faltava. E não encontrava. E sentava ali, diariamente, horas a fio, estaticamente, pulsando na mesma freqüência do cursor, produzindo tanto quanto uma abelha falecida. E então, preservando a rotina já estabelecida há tantos dias que compunham anos, levantou-se. "Espairecer e buscar inspiração" era o motivo que justificava para a própria consciência. Carteira de cigarros na mão e isqueiro no bolso. "Lá fora, o mundo é cheio e as idéias são vastas, quem sabe é hoje..." pedia ele, sabe-se lá a quem.

E, naquele dia, nem mesmo precisou ir longe. Logo ao sair do portão de sua solitária moradia, ainda acostumando-se à luz intensa daquele sol escaldante, a mão esquerda ascendia o filtro do cigarro até a boca enquanto a direita trazia o isqueiro. Sem saber uma causa ou razão que pudesse explicar o porquê, olhou naquela direção e viu. O polegar estacou em uma mão imobilizada a meio caminho entre o bolso e os lábios que prenderam o cigarro que escapou dos dedos. Estático, plenamente. Nem mesmo o pulsar do cursor o mobilizava. Mas, dessa vez, não havia apatia ou acinesia. Só o que havia era aquela visão. Cabelos longos e soltos. Não eram tão volumosos, mas desciam tal e qual a corredeira mansa de um riacho em paz. Lábios pequenos e intensos e olhos vivos e brilhantes. Cativantes. Uma simetria que beirava o fascinante e ultrapassava o maravilhoso quando os olhos percorriam todo aquele corpo em harmonia consigo mesmo. E então, ele viu. A si próprio. Aproximou-se dela com um discreto e quase inaudível "Com licença, tem fogo? Meu isqueiro acabou de acabar..." com uma expressão envernizada num sorriso tímido de quem se sente incomodado pelo incômodo que causa. "Desculpe, mas não fumo" foi a resposta, educada porém terminal. "Faz bem, fumar mata, dizem por aí... Mas não tem nem um fósforo de acender fogão? Preciso muito acender esse cigarro agora..." foi a resposta dada por uma face tão polida que brilhava aquela timidez meiga, sedutora e calculada. "Um momento, vou ver com a minha vó" replicou um olhar antes frio porém agora curioso. Foi e voltou em poucos minutos com uma caixa de poucos fósforos desculpando-se "Só tinha os de acender incenso, pode ser?" "Claro... Muito obrigado" foi o retorno de um rosto aliviado. "Você está bem?" perguntou ela, com sincero interesse. "Estou sim... Apenas um pequeno problema que tem me incomodado um pouco, mas espero resolver logo." "E eu posso ajudar em algo?" "Já está ajudando, na verdade. Eu só precisava de um motivo pra puxar assunto e meu problema seria você entrar pra pegar os fósforos e não voltar..." respondeu um sorriso de verniz lixado e honesta expressão amadeirada. E ela, sorrindo um sorriso de 'eu sabia', pede "Autografa meu livro?" "Como?" "Autografa meu livro? Você é aquele escritor, não é? Tá um pouco mais novo na foto, com todo respeito, mas é você, né?" Um suspiro e uma expressão de 'não é bem assim' e ele diz "Se quiser, eu autografo, mas a única coisa que eu escrevo são listas de supermercado e folhas de cheque sem fundo. Mas, pra um rosto tão bonito e angelical, fica difícil recusar um pedido desses." E ela, agora com uma vermelhidão crescente e ascendente a aquecer-lhe todo o rosto, pergunta "Mas não é você?" "Adoraria, mas não... Tenho que admitir que somos bem parecidos, e você não é a primeira que faz essa confusão, mas infelizmente não sou eu. Não tenho capacidade pra escrever tão bem assim..." respondeu ele como quem acredita em uma crença que começa a nascer em seu próprio pensamento. E, vendo-a esconder-se atrás do livro, rubra qual uma maçã madura, concluiu "Mas não se preocupe, não me incomodo. Gostaria de ser tão bom quanto ele, mas nem todos nascem com esse dom... Eu tenho outros, felizmente." "Sério? E quais são seus dons?" devolve ela, ainda hiperemiada acima do normal. "Não posso comentar em público e muito menos nesse horário... Se quiser, podemos ir pro meu quarto e eu te conto lá..." foi a resposta acompanhada de um sorriso de intenção pouco esclarecida. Uma expressão surpresa que tanto podia ser sincera quanto fingida respondeu "Que indecência! Fazendo uma proposta dessas pra uma moça de respeito no meio da rua!" E ele, com um sorriso agora debochado "Calma, anjo... Não quero ofender sua dignidade, mas não podemos falar de assassinatos em série em plena luz do dia, concorda?!" Uma gargalhada sonora, sincera. "É, tem razão... Aí fica meio arriscado. E, pelo visto, bom humor é outro desses dons, né?!" "O maior deles, talvez..." foi a resposta de um sorriso cativante recebida por um olhar cativado.

E, nesse momento, a mão direita devolveu o isqueiro no bolso e os dedos da esquerda pescaram o cigarro que ameaçava cair. Ainda via a projeção mental do seu próprio ser interagindo com aquela musa que sequer sabia quão inspiradora era. E, apesar de a verdadeira não ter acompanhado o deslocamento da criação onírica daquela mente divagante, aquele casal saiu dali em direção a 'outro lugar' para que pudessem 'se conhecer melhor', enquanto ele voltava para dentro de casa. Economizara um cigarro, mas usaria aquele cursor piscante como há muito não o fazia. Não acreditava em amor à primeira vista. Não acreditava em divindade. Não acreditava em muita coisa. Aliás, acreditava em nada. Mas não precisava acreditar. Nunca precisara. Desde sempre, fora um criador de crenças, e não um crédulo. E sabia que por isso era lido. E, mesmo sabendo que precisava repaginar-se, reinventar-se, renovar-se, não o fazia. Ao menos, não externamente. Estava sozinho. Ou melhor, era sozinho. Muito mais que um estado, aquela solidão era uma característica inerente, indissociável do seu ser. Por opção, pura e simples opção. Consciente, acredite se quiser. E, quando questionado se não sentia falta de viver uma vida, ele respondeu "Não, porque eu vivo várias vidas." E era assim que escrevia a própria história. Seu espírito era livre para viver quantas vidas quisesse. E seu corpo estaria sempre ali, pronto para transformá-las em sucessos literários.

Era só um elefante...

"Amor, acho que escutei um barulho lá fora" disse ela, com olhos semicerrados. "É só impressão querida, pode voltar a dormir" respondeu ele, sonolento. "Mas amor, eu tenho medo... e se for um ladrão?" "Se for, ele é que tá lascado. Nós moramos no bairro mais seguro da cidade, temos alarmes nas portas e janelas e uma dúzia de câmeras de vídeo. Pode dormir sossegada." "Mas amor..." "Grunfglorbhsfff" grunhiu o companheiro, enquanto se levantava. Barulhos e sons, botões, portas, fechaduras, silêncio. Poucos minutos depois, ele volta "Era só um elefante violeta, meu anjo. Pode voltar a dormir. Vou lá fora fumar um cigarro pra aproveitar que levantei e já volto" disse abrindo a gaveta e retirando algo de dentro. "Traz um copo d'água na volta..." "Algo mais?" "...com um pouco de groselha..." "E...?" "...umas gotinhas de limão..." "Tá bom... Sempre assim, né?! Tudo que você me pede sorrindo, eu faço chorando. Há onze anos." "Doze, você sempre erra!" "Onze, meu amor. No primeiro, eu fazia sorrindo..." Dois sorrisos, carinhosos, um dele e outro dela. Doze anos. Praticamente o tempo de uma vida. Doze anos de partilha e companheirismo. Sempre o mesmo bom humor, sempre a mesma fragilidade. No começo, era tudo surpreendente. Por começo, entenda como dois anos, talvez três. Depois, uma certa rotina foi criada, mas as surpresas esporádicas sempre reavivam o interesse e a curiosidade, de ambos os lados. Ambos achavam incrível o fato de, mesmo após tanto tempo, ainda encontrarem novidades no outro. E ambos também sabiam que ainda havia muito a ser revelado, embora não soubessem se um dia o fariam.

Doze anos. Era o tempo que ela escondia aquele segredo dele. E muitos anos antes já carregava aquele sigilo. Por fora, funcionária do alto escalão de um ministério. Cargo de confiança. Muita confiança. Chegava a passar quase vinte dias em atividade contínua, viajando. Seguidos de alguns dias em casa, de folga relativa, apenas preenchendo formulários e relatórios. Geralmente uma semana, às vezes um pouco mais. Raramente, bem mais. Na realidade, a coisa era um tanto quanto diferente. Quando ele se levantou e saiu pela porta do quarto, um movimento rápido de uma mão ágil trouxe uma pequena pistola calibre vinte e dois do fundo falso da gaveta do criado mudo até embaixo do travesseiro. Tanta fragilidade tinha dois motivos. O primeiro, óbvio, era sentir-se cuidada, afinal de contas, ela era uma mulher! O segundo, sigiloso, era dispersar a atenção. Assim, ficava quase impossível desconfiar do trabalho de infiltração e espionagem que executava. Trabalhava para o governo, sim, mas sua função era outra. Especialista em contra-espionagem. A melhor. O crachá daquele ministério era a camuflagem perfeita, dando-lhe status de 'auditora' para penetrar qualquer esfera do governo em qualquer local do país. Tanto medo, na verdade, era apenas a cautela necessária a quem precisa sobreviver. Não temia ataques, saberia revidá-los, pois fora treinada para tal. Mas, ainda assim, preferia a cautela naqueles espaço onde vivia sua fantasia. Ou sua realidade, já não sabia mais dizer. Cada vez que se via em um mundo, o outro parecia apenas uma fantasia, um sonho distante. Era nisso que pensava enquanto ele saía com o cigarro na mão. De lá, a marca da aliança no quarto dedo esquerdo lhe dava segurança dessa verdade. De cá, a pistola no criado mudo lhe assombrava com a outra verdade. Do mesmo fundo falso, puxou o monitor portátil que só ela sabia existir. E observava seu protetor doméstico pelas câmeras de segurança. Adorava seu bom humor e seu riso fácil. Válvulas de escape de uma vida estressante, dizia ele. Via-o na calçada, falando sozinho, gesticulando energicamente como se falasse com alguém fora do vídeo. Ela o via fazer isso com certa freqüência, e, quando enfim teve coragem de questioná-lo, "Sou eu gritando com funcionários imaginários, pra não fazer isso na empresa" foi a resposta ouvida. Coitado. Tão estressado, por tão pouco. Se ao menos ela pudesse compartilhar um pouco do seu mundo com ele. Se ao menos ele imaginasse a realidade surreal que ela vivia. Às vezes, sentia-se a personagem de um filme. Mas sabia que era tudo verdade. E sonhava com o dia em que ele descobriria tudo, meio por acidente. Aí, enfim poderia desabafar e compartilhar. Mas sabia que era um sonho, apenas. Mas um dia, quem sabe, teria coragem de revelar a surpresa máxima que ela levava. Um dia, quem sabe...

Doze anos. Era o tempo que ele escondia aquele segredo dela. E uma vida inteira antes já carregava aquele sigilo. Por fora, um grande executivo da indústria alimentícia. Dono de toda uma cadeia produtiva poderosíssima, herdada de seu pai e gerida ao lado de seu irmão. Ele cuidava dos negócios na cidade, enquanto o outro geria os investimentos no campo. Trabalho estressante. Muito estressante. Piadas e gracejos constantes eram uma forma de desabafo e alívio. Uma forma de dizer a verdade sem que os outros suspeitassem. Tudo começara antes mesmo de seu nascimento, quando seu pai herdou aquele maldito guarda-roupa de um parente europeu tão distante que sequer tinha o mesmo tipo sanguíneo. A empresa de gêneros alimentícios era real, uma excelente camuflagem para o verdadeiro trabalho executado, pela enésima geração consecutiva daquela família. Aquele país supostamente imaginário demandava uma atenção verdadeira demais. "Dizem que os elefantes nunca esquecem, então você deve ser uma anta, seu paquiderme inútil!" vociferava ele, contendo o volume de sua voz para que ela não ouvisse. E o pobre elefante, de violeta se tornava quase vermelho, de tanta vergonha e medo. Abaixava a cabeça e encolhia a tromba, e quando ensaiou uma resposta excusa e tímida, foi interrompido "Olha," dizia ele, entre irritado e compassivo, "eu sei que não é fácil pra vocês, mas eu preciso da colaboração de todo mundo pra fazer isso dar certo! Já pensou se descobrem você aqui? É zoológico na certa! Eu já cansei de repetir, quando o carro vermelho estiver na garagem, não é pra se aproximar! Significa que minha esposa está em casa." Pausa. Precisava de fôlego e de algumas tragadas. E o paquiderme, ainda acuado, sabiamente optou pelo silêncio. "Eu não tenho como te colocar em casa, não hoje. Ela chegou ontem e ainda não tem data pra viajar de novo. Você lembra onde é a fazenda?" E, vendo o pobre animal se encolher até quase o tamanho de uma formiga, explodiu de novo "Mas puta que pariu, tem certeza que você é um elefante? Como você lembra de comer todo dia? Presta bem atenção, vou explicar de novo. Passa o muro do condomínio, aqui atrás de casa, vira à direita e segue a estrada até a bifurcação. Depois segue à esquerda, tá me ouvindo?! Esquerda! E vai até o fim que a estrada termina na fazenda. Eu tô sem tinta vermelha pra te esconder na plantação de tomate, mas, por sorte, os figos tão maduros, então você se esconde no meio do pomar de figos, entendeu? E lembra de ir pelo lado de cá, que é onde não tem câmera. E fala praquele macaco imbecil que eu sei que ele tá aqui, não adianta tentar se esconder. Leva ele junto e fala praquele banana que se ele atacar meus maracujás de novo, eu corto fora as bolas dele! Amanhã eu arrumo uma desculpa e vou até lá terminar de resolver isso." E observava aquela imensa massa arroxeada se afastar enquanto terminava de fumar seu cigarro. Já dentro da cozinha, enquanto preparava a groselha, pensava no quanto gostaria de poder compartilhar aquela realidade com sua amada. Via-a em seu mundo ministerial, burocrático e monótono, e tinha medo de qual seria sua reação se um dia ela descobrisse. Mas, ao mesmo tempo, torcia para que ela descobrisse, meio por acidente, pois daí seria obrigado a revelar aquela verdade. "Uma verdade cada vez mais difícil de esconder" sussurrou para si mesmo, enquanto se encaminhava para o quarto. Abrindo a porta do quarto, ouviu a gaveta do criado mudo se fechando. "Espantou o elefante?" perguntou ela. "Levou um esporro tão grande que de roxo saiu branco, coitado." E, enquanto a abraçava, já deitado novamente, pensava no quanto a amava. E, pela primeira vez em doze anos, pensava no quanto desejava que ela viajasse logo. Acima de tudo, queria tê-la por perto. Mas, infelizmente, com ela por perto, seria difícil dar um destino àquele atum escondido na caixa d'água sem levantar suspeitas...

Onipresença

"Doutor, ele vai parar!" disse ela. "E o que você espera que eu faça?" retrucou ele. "O seu trabalho." Curta e grossa. Sempre fora assim, desde pequenos. Quatro anos de diferença. E, ainda assim, as primeiras palavras dela foram ordens para o irmão. E assim foi uma vida inteira. Ela mandando e ele reclamando. Às vezes, ele obedecia. Às vezes, ela cedia. Quem olhava de fora, via dois irmãos em constante conflito. Mas, de dentro, ambos conheciam bem aquele equilíbrio que funcionava entre eles.

Compreendiam-se como só duas almas gêmeas poderiam se entender. E engana-se quem pensa que almas gêmeas são apenas apaixonados. Almas gêmeas são aquelas que se complementam, independente do relacionamento. E aqueles dois se completavam de uma forma curiosa. Ela era a iniciativa, a energia, a fagulha. Ele era a execução, o movimento, a combustão. E, juntos, eram a plenitude de uma grande obra. Quando agiam juntos, era um espetáculo belíssimo de se ver. Bailavam numa sincronia incrível. Deslocavam-se em passos coreografados plenos e perfeitos. De uma forma tão natural que era assombrosa.

Talvez por isso, talvez por outro motivo desconhecido, singraram caminhos diferentes em um mesmo rumo. Ele, médico. Ela, enfermeira. Alguma estranha coincidência do universo, se é que elas existem, fez com que se graduassem juntos. E ela, contratada do hospital onde ele fora admitido como residente. E, numa repetição de sua infância, amadureceram juntos novamente. Profissionalmente. No começo, engraçado do ponto de vista do observador externo. Mas, aos poucos, começaram a entender aquela estranha dança que, só agora, tantos anos depois, fazia sentido àquele que assistia. Pouco a pouco, conquistaram respeito e espaço na instituição. E os novatos que riam da enfermeira mandona e do médico submisso eram rapidamente repreendidos pelos mais antigos. Afinal, quatro braços e dois cérebros compunham uma unidade quase onipresente. Tal e qual um anjo que encarna em dois corpos.

Foi tudo um mal entendido...

"Então é isso, foi tudo um mal entendido..." disse ela. E sorriu. Uma doce e carinhosa ironia, ali, no meio daqueles lençóis flanelados, simples e rústicos, porém quentes e aconchegantes como nunca experimentara antes. Não entendia. Ou melhor, entendia, mas ainda não aceitava. As cores eram mais coloridas. Os cheiros mais cheirosos. Os toques mais intensos e sons mais melodiosos. Era tudo tão real que nem mesmo parecia realidade. Era tudo tão... vibrante... claro... natural... Quase como se não pudesse ser diferente.

"É... acho que foi mesmo..." disse ele em outra doce e carinhosa ironia naqueles mesmos lençóis. Sorrindo. Aquele sorriso que há tempos não lhe saía do rosto, quase como uma paralisia de Bell que idiopaticamente acomete os incautos. Mas, apesar da incautela de sua parte, ele bem sabia que não havia idiopatia nenhuma naquele espasmo muscular, pelo contrário, era uma etiologia muito bem conhecida. Um mal entendido...

Tudo começara sabe-se lá quanto tempo atrás. É impossível contar passado e futuro quando apenas o presente existe. Mas independente de quando, ele lembrava das vestes azul-celeste que ela usava quando se viram uma primeira vez. Aquele mesmo tom de azul que serve de fundo para os anjos que habitam o Éden. Pelo menos, era assim que ele se lembrava. Ela bailava por aquele salão de poucas janelas, deslocando-se graciosa e precisamente, como se tivesse certeza do que fazia, tal e qual um pássaro que dança pelos céus. O mal entendido começou ali, quando ele não entendeu quem era ela. E continuou ali, quando ela não viu quem era ele. Era apenas mais um dentre tantos, num terno azul-marinho como os oceanos mais límpidos e profundos. A diferença era apenas um sorriso fácil e uma atitude espontânea, repleto de graciosidades e acrobacias, tal e qual um golfinho que rasga a superfície d'água. E tudo começou com um gracejo, uma inocência. "Precisa de alguma coisa?" perguntou ela. "Um pouco de atenção" respondeu ele, sorrindo. E ali estava destruído o gelo que os separava.

Mudaram-se os tons de azul. Variou-se para verde, branco e até mesmo cor-de-rosa. Sempre vestidos esvoaçantes e ternos de fino corte. Sempre naquele salão de poucas janelas, onde ela voava graciosamente e ele nadava acrobaticamente. O mal entendido continuou quando ela, inocentemente, aceitou um convite não tão inocente da parte dele. Mas foi um programa puro e simples, sem malícia e sem segundas intenções, apenas pelo prazer da presença. Mas uma presença que deixou as coisas ainda mais difíceis de se entender. Um misto de será? com um toque de que bom! e um leve aroma de vamos de novo?! E nenhum dos dois entendia...

"Ainda bem que entendi tudo errado, então..." foram palavras nunca ditas. Caladas em ambos os pensamentos que as formularam. Ele sorria. Ela não entendia. E ambos viviam. Intensa e naturalmente, como se cada dia respirado até o momento fosse apenas uma espera. E não se sabia como resolver aquele mal entendido. Não se buscava solução para aquele mal entendido. Ele, por si só, era o mal entendido mais bem acertado que se podia esperar. E visto que não há necessidade de cura quando não há males a serem resolvidos, só o que lhes resta é deixar o entendimento de lado e viver aquela realidade, tão surreal que até parecia verdade...

Porque há instintos...

Ela dormia. Profundamente. E ele ali, a observá-la. Acompanhava sua respiração, movimentos lentos e profundos, suaves. Inconscientemente, respirava no mesmo ritmo, enquanto desenhava aqueles traços finos, delicados e sutis em seu pensamento. Fixava em sua memória aquele rosto único, angelical, quasidivino. Seus olhos percorriam aquele corpo parcialmente coberto por uma manta e admirava aquelas curvas, tocando-as. Mentalmente. Não queria perturbar aquele sono quasiperfeito. Ocasionalmente, não resistia, e afastava aquela mecha de cabelo que insistia em cair sobre aquele rosto de feições artísticas. Um toque mais leve que um sopro de brisa no campo. E a observava, fixamente, continuamente. Quase que hipnotizado. Completamente delirante. E ali, cultuando aquela obra-prima divina, adormeceu, enfim.

Ela não dormia. Mantinha os olhos cerrados, mas estava desperta. Como se meditasse profundamente. Sua respiração, lenta e profunda, parecia elevar sua mente ao máximo da percepção. E todo seu corpo ia junto. Sabia que ele a observava. E gostava disso. Sentia todo seu corpo vibrando com o desejo que irradiava dele. Arrepiava-se quando sentia aquele dedo leve como uma pluma a tocar-lhe os cabelos. Quase era capaz de perceber aqueles olhos a percorrerem cada curva de seu corpo. Sentia e vibrava cada segundo como se fosse uma hora. Nunca antes uma noite fora tão surpreendente quanto aquela.

Oito horas da manhã. Do dia seguinte. Naquele aeroporto, um tanto quanto distante daquela cama, uma auxiliar de higiene lamenta sua árdua vida ao se deparar com toda aquela tinta vermelha misturada a mechas de cabelo desproporcionais, espalhando-se pelo banheiro feminino. Se chegasse apenas alguns minutos antes, veria uma ruiva desconhecida e irreconhecível deixando o recinto. Quase irreconhecível, na verdade. Pois quem olhasse em seus olhos a reconheceria imediatamente. Viúva negra era o apelido designado pela mídia declaradamente sensacionalista e também adotado pela mídia discretamente sensacionalista. Doze vítimas, até o momento. Isso é, doze vítimas atribuídas a ela, mas somente a própria sabia o real número de homens que entregaram suas vidas em seus braços. Literalmente. Em comum o fato de que todos partiram sorrindo. Era assim. Sentia nojo dos homens e seus sentimentos e atos carnais e superficiais. Procurava aquele que fosse diferente e, aqueles que não o eram, bem... não eram merecedores de tê-la como troféu. Agora, ainda estava confusa. Não entendia. O último, não fora igual. Mas também não sabia dizer se fora diferente. E, enquanto pensava e tentava entender, sorriu. Por baixo dos grandes óculos escuros, viu o próximo candidato a observá-la. E ali, naquele portão de embarque, enquanto ainda tentava entender o que era incapaz de explicar, observou o próximo candidato à diferença se aproximando, após receber aquele sorriso permissivo. E assim, tal e qual o caçador que se finge manso para atrair a caça, ela recebe aquele cortejo. Busca uma diferença, mas sabe que vai encontrar o mesmo. Somente aquele que não foi igual encontrou um espaço verdadeiro em seu pensamento. Diferente deste, que, após poucos minutos de conversa, já tem seu destino definido. Uma manchete, sensacionalista ou não. E ela lamenta. Sinceramente. Gostaria que fosse diferente. Mas, infelizmente, certos instintos são inevitáveis.

Dez horas. Da manhã daquele mesmo dia seguinte. Na sala que antecede a cama, entra a empregada. Garrafas de vinho e embalagens de chocolate. E um sorriso irônico. Já sabia que, naquela cama, encontraria uma jovem ex-donzela, seminua. Ou completamente nua. E, delicada porém definitivamente, era sua a tarefa do adeus. Gostava de seu patrão. Era bom e generoso para com ela. Não concordava com seu estilo de vida, mas não cabia a ela questionar a hierarquia superior. Dirige-se ao quarto, automaticamente, meditando e recolhendo o que encontra pelo caminho. E então, ao abrir a porta, pára, subitamente. Surpresa. Confusa. Numa caricaturesca cena onde seu queixo tocaria o chão se não estivesse preso por ligamentos. Quem dorme é o patrão. Numa cama obviamente desarrumada por dois corpos. Dorme, é apenas uma forma de descrever. Na verdade, ele parece... estático... mais que o normal. Parece... não respirar. Parece... Engasgo. Tosse. Respiração profunda. De ambos. Ele, despertanto. Ela, aliviada. Ele se vira e palpa a cama. Vazia. Ainda sente o perfume dela no travesseiro. Lamenta. Sinceramente. Infelizmente, alguns instintos são inevitáveis. Já tivera muitos corpos em sua cama, mas nunca o mesmo corpo por mais de uma noite. E ali, pela primeira vez, desejou novamente aquele corpo. Não pela carne, mas pelo conteúdo. Porque, felizmente, há sentimentos que superam até mesmo instintos inevitáveis. E aquele sentimento de plenitude, inédito, inexplicável, atingido somente com uma presença, sem corpo e sem contato, sem posse. Um toque de espírito, literalmente. Ansiava novamente por aquele toque, por aquela presença. Por aquele sentimento. Mas aquela entidade agora intangível se fora e, aos poucos, inconscientemente, ele permitia que o instinto reassumisse o controle. Longe dali, a dez mil pés de altitude, outro espírito se deixava dominar pelo instinto novamente. Mas levaria consigo para sempre aquele sentimento. Ele, no chão, nem mesmo imaginava que sua vida fora poupada ao dar àquela alma um sentimento de esperança. Esperança de que nem tudo era igual. Porque, ainda que existam instintos inevitáveis, há sentimentos que superam tudo.

Reviravolta

"...mas pode me chamar de reviravolta." Foi só o que ele entendeu. Abriu os olhos e levantou a cabeça. E não entendeu o que viu. Parecia uma silhueta de mulher, envolta em um manto quasibranco, com uma cor parecida com algodão cru, mas a suavidade e a delicadeza de um tecido élfico daqueles que só se imagina em histórias de fantasia. Mas não se viam feições. Não se viam detalhes. Era uma voz doce e encantadora, melodiosa, transmitia-lhe paz e segurança, mas não conseguia vislumbrar a boca de onde partia. Não conseguia ver os olhos que sabia estarem a observá-lo. Estava sentado em uma posição confortável e, desistindo de reconhecer aquela que se encontrava diante de seus olhos, desviou o olhar e buscou identificar o entorno. Foi então que se confundiu ainda mais. Não reconhecia aquele ambiente. Sequer havia algo para ser reconhecido. Não via móveis, nem paredes, nem pessoas. Não havia quadros ou pontos de referência. Havia apenas... árvores. Estranhamente, estava sentado em uma poltrona feita de árvores... Não de madeira cortada, mas de árvores, propriamente ditas. Identificou duas, e talvez uma terceira, e sentava-se confortavelmente sobre elas, todo o corpo apoiado, mais macia que qualquer colchão que já houvesse experimentado. Pareciam ter sido moldadas, torcidas, direcionadas para que assumissem aquela posição. Ergueu os olhos novamente e outra vez encarou aquela figura. Seus olhos estavam se habituando lentamente àquele ambiente e, aos poucos, via com um pouco mais de clareza. Mas ainda não via feições.

"Quem é você?" perguntou ele, tentando entender melhor o que lhe acontecia. "Meu nome é vida, embora alguns me chamem caminho, oportunidade, experiência, destino e muitos outros nomes. Mas hoje, você pode me chamar de reviravolta." E enquanto ele ouvia, e não compreendia, embora aquela figura não pudesse ser mais clara, forçava a memória e buscava as lembranças mais recentes. Há um tempo que parecia uma semana atrás, lembrava-se da internação. Pneumonia. Tudo tem uma primeira vez, ainda que seja aos sessenta e muitos anos. Fora internado, a pedido da médica que o atendeu na urgência daquele centro de referência, em um quarto com outros três colegas enfermos. Dois dias depois, segundo era capaz de calcular, lembrava-se de uma sensação densa, calafrios e tremores, algumas coisas que supostamente não deveria ver, muita tosse, dor no peito, falta de ar. Fora então encaminhado a um tratamento mais especializado em outro andar, onde passaria a receber atendimentos mais freqüentes e uma atenção mais intensiva. Melhorou, e bastante, até onde era capaz de recordar. Não havia mais delírios e a tosse, ainda que persistente, agora era uma aliada a limpar-lhe os pulmões. Mas a última recordação que levava registrada era de uma dispnéia súbita e intensa, como nunca sentira antes. A vista meio turva, mal conseguindo movimentar os braços, e o ar que parecia não ser suficiente. Chamou uma enfermeira, que chamou um médico, que chamou toda a equipe. E então... e então... não sabia dizer. "Foi isso então, eu morri." afirmou ele, falhando em formular uma pergunta. "Não. Pelo menos, ainda não" foi a resposta, direta e surpreendente. "Você ainda não morreu e nem vai morrer tão cedo, se souber aceitar o que lhe for pedido e o que lhe for oferecido." E então ele a encarou novamente. Não havia uma expressão facial que pudesse interpretar, mas, de alguma forma, sabia que ela falava sério. Sabia que não era uma promessa vã. Sabia que deveria ouvir.

"Mas eu já estou velho, não há nada que se possa querer de mim ou que eu possa esperar do mundo. Já vi tudo que poderia ter visto, já experimentei tudo que poderia ter experimentado. Sei que estou longe de conhecer tudo que há no mundo, mas tudo que me era possível viver, eu vivi" argumentou ele, sensato como nunca fora antes. "O que é o tempo, senão um sistema rudimentar de calcular as voltas que seu planeta dá em torno de uma estrela? O que é o tempo, senão uma série de cálculos e hipóteses e suposições que perdem toda sua validade quando uma força maior muda o eixo do astro onde vive? O que é o tempo, senão uma forma de discriminação discreta e aceita?" Silêncio, foi a única resposta que encontrou. "O passado é uma lembrança, muitas vezes contaminada pela parcialidade da memória. O futuro é uma esperança, muitas vezes deturpada pela ânsia do desejo. Só o que existe é o presente, em todos os mundos e em todos os planos. E a duração máxima que o presente pode ter, é o agora. Nem mais, nem menos, apenas isso. E não está em suas mãos determinar quanto é agora. Nem mesmo nas minhas. É algo tão grande que eu sequer sou capaz de lhe explicar em palavras inteligíveis. E hoje, eu estou aqui para lhe dizer que o seu agora ainda existe, e que pode continuar existindo por um prazo indeterminado, se você aceitar a nova realidade que lhe trago."

Estava incomodado. Muito incomodado. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Não sabia onde estava. Não sabia quem era aquela ou o que ela esperava dele. Enquanto pensava nisso, ela se aproximou. Sentia-se assustado, mas, de alguma forma que não entendia e por algum motivo que não sabia, confiava que ela não lhe faria mal. "Veja" disse ela, enquanto aquelas mãos que mais pareciam fachos de luz tocavam sua testa. E então ele viu, diante de si, como se estivesse olhando uma teletela. Viu a si mesmo, deitado na segunda cama que ocupara no hospital. Que ainda ocupava, segundo a visão lhe informava. Sondas e agulhas introduzidas onde antes havia nada, soníferos injetados regularmente em suas veias, e seu corpo se comportando como se fosse recheado de estopa e serragem. Via as pessoas lhe moverem braços e pernas, via a si próprio sendo trazido de lá pra cá e de volta pra lá, deitado de lado, de frente, seus braços se movendo pelas mãos de outrem, até mesmo sua respiração parecia ter sido terceirizada. E não sentia nada disso. Não sentia mãos em sua pele, não sentia tubos em sua boca, não sentia nada do que via. E se antes não entendia, agora menos ainda. "Sou eu?" foram as duas únicas palavras que foi capaz de formular. "É o seu corpo, se é isso que quer dizer. Você está aqui, comigo" foi a resposta, tão impactante quanto um balde de gelo numa criança dormindo. "E o que isso tudo significa?" tomou coragem para perguntar. "Significa que sua vida, como você conhecia, está por um fio. Literalmente. Nada será como antes, tenha certeza disso. Se aceitar as condições que lhe proponho, voltará a assumir o controle do seu corpo, mas tudo estará mudado. Se não, daqui partirá em direção ao seu merecido lugar." "E quais são as condições?" perguntou, porque, agora, aquilo lhe interessava. Estava negociando e, isso, sabia fazer muito bem.

"Humildade" foi a resposta. "Como assim?" perguntou novamente, entendendo cada vez menos. "Foste um grande patriarca, no seu mundo. Agora, estou a lhe oferecer a oportunidade de ser um patriarca ainda maior, em ambos os mundos. Terá a oportunidade de crescer a si mesmo, fortalecendo sua humildade e sua resignação, ao mesmo tempo em que dará à sua família a oportunidade de crescer junto, ensinando-lhes o valor do amor e do trabalho." "Mas isso eu já fiz. Todos trabalham, todos nos amamos. Temos problemas, logicamente, toda família os tem, mas somos uma boa família, íntegra, honesta e unida. Como posso ensinar mais?" retrucou ele. "Exercitando a humildade. Sua família é realmente um exemplo, e exatamente por isso está recebendo a oportunidade de concluir seu crescimento nesse mundo com a experiência máxima que a Vontade Suprema pode lhos oferecer, o amor, o verdadeiro amor, a resignação, a aceitação, a doação" disse-lhe a vida. "E como serei capaz de proporcionar tudo isso a eles?" "Confiando. E aceitando." "Mas e" "Não existe mas", interrompeu-lhe bruscamente a entidade luminosa, impedindo que concluísse "isso não é uma barganha, isso é uma escolha. Confie e aceite, e retornará para concluir seu trabalho perante os seus. Caso contrário, será levado a outros caminhos para que possa atingir o mesmo fim." E então ele enfim entendeu. Não confiava, pelo menos não plenamente. Mas, por algum motivo, aceitou. Pelo apego, pelo vício, pela vontade de preservar aquela que chamava de vida, aceitou. E quando encarou novamente a reviravolta, não foi capaz de formular uma resposta. Via-a diante de si, mas agora estava em outro ambiente. Olhou em volta e reconheceu a unidade daquele hospital onde seu corpo recebia tratamento. "Ele acordou, que bom" foi o que ouviu, dessa vez vindo de uma boca que se movia e de um rosto que reconheceu como um dos profissionais daquela instituição. "Vamos tirar isso da sua boca agora" foi a frase seguinte. E então, com uma delicadeza brutal, algo foi arrancado de si. Sua garganta arranhou, seu estômago nauseou e seus olhos lacrimejaram, mas aquilo foi arrancado de si. Respirou fundo e sentiu novamente o ar fresco a lhe inflar o peito, ainda que com alguma dificuldade. Aquela que lhe fizera a proposta ainda estava ali, luminosa e sem feições, tal e qual a conhecera. Ainda não entendia tudo que acontecia, mas sabia que estava vivo, e então relaxou e dormiu.

Acordou quando sua família o tocou. Sua neta caçula e a mãe dela, a filha que ainda vivia nos arredores. Acariciaram-lhe os cabelos gentilmente, beijaram-lhe o rosto, entre lágrimas de ambos os três. Ele tentou falar, mas sua boca se moveu afônica. Forçou novamente, mas não foi capaz de formular sons coordenados. "Descanse, papai, o médico logo vai vir e vai explicar o que aconteceu" confortou-lhe a filha. Minutos depois, conforme prometido, o médico se aproxima do leito e aborda delicadamente a família em momento íntimo. "Olá. Como estão vendo, ele melhorou bastante. Conseguimos extubá-lo essa manhã e até agora, tudo corre bem. Ainda está muito fraco e vai precisar de algum tempo pra se recuperar, mas respira sem dificuldade e já não depende de tantos medicamentos. Aos poucos, vamos tirando ainda mais e logo ele vai para um quarto de enfermaria." "E o derrame?" pergunta a neta. "Bom, essa é parte mais delicada... Ainda não sabemos toda a extensão da lesão no cérebro, por isso é difícil dizer. Ele parece entender tudo que falamos, mas não consegue falar, ficou afásico, e ainda não sabemos exatamente como os movimentos de seu corpo foram afetados, temos que aguardar a evolução para que possamos afirmar com certeza. Com o tratamento adequado podemos recuperar muita coisa, mas é impossível dizer exatamente o que vai acontecer." E foi nessa hora que ele parou de ouvir. Chorava, silenciosa e discretamente. Olhou para o alto, como quem pede socorro. Não era isso que desejava, não era essa sua vida. E enquanto buscava entender o que acontecera, percebeu que a reviravolta ainda estava ali, a observá-lo. E então, ouviu sua voz uma última vez "Humildade e resignação, foi o que você escolheu aprender. Confie naqueles que ama, e permita-lhes que aprendam o valor do amor, da doação e do trabalho. Confie naquele que me enviou", enquanto sua imagem se tornava cada vez mais sutil até desaparecer por completo.

Telefonopatia

"Você é um menino de luz", disse-lhe o avô octagenário. E aquela criança de apenas poucos anos ficou a encará-lo, tentando entender o que aquilo significava. "Como assim, vovô? O que é ser um menino de luz?" E o velho homem sorriu. Sabia que ainda era cedo. Sabia que ele não entenderia plentamente aquilo que iria ouvir. Sabia que ele sequer lembraria de tudo que lhe seria dito. Mas, acima de tudo, sabia que seu tempo era pouco e que deveria fazer o possível por aquela criança.

"Significa que você tem um dom, uma coisa que te torna especial" foi a resposta mais simples que conseguiu formular. "Quer dizer que eu sou melhor que os outros?" E o avô riu-se ao observar a expressão de interrogação e exclamação do pequeno. "Eu não quero ser melhor que ninguém, vovô. Outro dia, lá na escola, ouvi um amigo contando que o irmão dele apanhou de outro menino só porque tirou uma nota boa. Não quero apanhar!" E a risada evoluiu para uma gostosa gargalhada, daquelas que só a ingenuidade de uma criança é capaz de provocar naqueles que já se esqueceram da simplicidade do mundo. Mas aquele respeitável senhor se controlou ao ver a expressão do garoto começar a mudar. "Não, meu filho, você não vai ser melhor que ninguém, não se preocupe. Vai ser apenas... diferente, digamos. Você vai ver coisas que os outros não vêem", explicou. "Vou ver fantasmas, vovô?!" perguntou-lhe um par de olhos esbugalhados. "Não, querido, não é bem assim. Na verdade, você vai ser capaz de ver o coração das pessoas", retrucou o sábio idoso, contendo outro acesso de gargalhadas. E então, um sorriso de exclamação pergunta "Então eu vou ter visão de raio-x, igual super-herói?!" Sem conseguir se conter, começou a responder ainda rindo "Quase isso, pequeno. Você não vai ter visão de raio-x pra ver através das paredes, mas vai ter um jeito diferente de ver, vai entender as pessoas, sentir o que elas sentem e, às vezes, até ouvir seus pensamentos." Voltando à face de interrogação, a criança pergunta "Vou ter telefonopatia?"

"É mais ou menos isso, meu neto. É um pouco mais, na verdade, mas ainda é muito cedo pra você entender tudo. Mas você até já tem um pouco, quer ver? Olhe nos meus olhos e tente descobrir o que estou pensando." E então os dois extremos se encararam. E o pequeno, subitamente, parte em direção ao corredor e alcança aquele velho relógio e, ao abrir o fundo falso dentro da rara peça, exclama inocentemente "Você mudou o esconderijo dos chocolates!" "Como você sabia que eu escondia aí?" perguntou-lhe o ancião, com um sorriso compreensivo nos lábios. E então, olhos tímidos e zigomas vermelhos, falando mais para si que para outrem, o pequeno diz "Eu... eu... sonhei que o senhor mostrava pra mim. Daí, quando acordei, vim ver se era verdade e tinha um monte de chocolate aqui... Todo dia eu como um, mas juro que é um só por dia!" Mudando de compreensão para satisfação, o avô questiona "E como você sabia que eu tinha mudado?" "Não sei... eu sabia, só isso" responde o neto com expressão confusa. E então, forçando uma seriedade que o momento não favorecia, o avô pergunta novamente "E você consegue descobrir onde eu escondi agora?" E o menino, encarando-o com seriedade, repentinamente ilumina o próprio rosto com um sorriso de satisfação e sai correndo em busca daquele segredo compartilhado no silêncio.

E o velho sorri, satisfeito. Satisfeito consigo mesmo. Mais ainda com seu pequeno sucessor. Conseguira cumprir seu primeiro objetivo, despertar uma curiosidade, um instinto, uma intuição. Oferecera ainda um pouco de esclarecimento que, aos poucos, amadureceria, juntamente com o portador daquela luz. Sentia-se feliz por poder orientar esse potencial em direção ao caminho que vira em seus sonhos. Sentia-se feliz por poder compartilhar aquele dom com alguém que lhe era tão querido. Sabia que seu tempo era pouco, mas agora tinha certeza que era também suficiente. Suficiente para ensinar àquela luz que seu caminho era o amor. Suficiente para evitar que aquele iluminado cometesse os erros que ele próprio cometera, permitindo-lhe procurar novos erros. E então, levantou-se e dirigiu-se à porta de saída. Precisava comprar alguns livros que lhes seriam úteis. E mais chocolate também...

O sapo

Era uma vez um sapo. Um sapo como qualquer outro sapo. Desses ordinários que encontramos por aí, cheio de verrugas, verde e gosmento. Mas, embora comum, este sapo era diferente dos outros. Tinha algo que o tornava único, especial. Era um sapo atropelado. Mas até mesmo para um sapo atropelado, ele fugia do normal. Não era um sapo esborrachado, completamente destituído de forma por um pneu de carro. Fora atropelado por uma bicicleta. Ou melhor, por uma pequena bicicleta. Mais especificamente, por uma carruagem, de uma pequena cinderela, que aparentava seis ou sete anos de idade e corria por ali, naquele momento, passeando no sítio de sua família. Era um princesa e, no momento em que atropelara o sapo, fugia apressada de um baile antes que sua carruagem virasse abóbora novamente. Até sentir uma lombada sob as rodas de sua bicicleta. Quase caiu e não entendeu nada, pois passara ali havia poucos minutos, a caminho do baile, e não havia lombada alguma. Um breve pausa na fantasia e a pequena menina volta para investigar. E, retomando a fantasia, deixa cinderela partir e fica a fada madrinha. Tomando por vara de condão o graveto mais retilíneo ao alcance da mão, toca o sapo uma. Duas. Três vezes. Na quarta, ele salta antes que a vara o toque, deixando pra trás um rastro de pó de fada. E antes que pudesse comemorar, uma mão a traz de volta à realidade. Pela orelha. Pobre criança, é uma mãe preocupada, apenas, que se esforça em ser boa, segundo seu próprio conceito. Inconcebível sua pequena menina brincando com um sapo morto no meio de uma estrada de terra. Bicicleta em uma mão, punho da menina na outra, e a jovem senhora segue de volta em direção à casa. Desejosa de continuar a fantasia iniciada, porém mais desejosa ainda de não levar uma boa medida sócio-educativa, a ex-fada segue conduzida. Antes, porém, olha novamente em direção à lombada, e vê um sapo morto, com uma marca de pneu de cerca de cinco centímetros de largura dividindo-o ao meio. Exatamente ao meio. Ao seu lado, um rastro de pó de fada que segue em direção à mata.

"Minha filha que perigo. Você podia ficar doente. Onde já se viu menina ficar brincando com sapo morto. Não, não tem discussão. Já pro seu quarto e fique lá até amanhã. E vai ficar até depois de amanhã sem a bicicleta. Um perigo, sair andando sozinha. E se fosse uma cobra?!" E a pobre criança se retira, escutando sem reagir, ainda tentando entender um sapo morto e um rastro de pó de fada. E, no castigo, só lhe resta dormir. E sonhar. Estranhamente, com um sapo. Parecidíssimo com aquele atropelado, mas diferente. Um tanto quanto...humano, talvez. No mínimo, bípede. E falante. Muito falante. E galante também, como todo sapo há de ser sob a carapuça de nojeira que o reveste. Aguarda a menina sentado sobre uma pedra, perna direita cruzada sobre a esquerda e um chapéu panamá em uma das mãos. Ou patas, não sei explicar. É um tanto quanto confuso. Ao vê-la, uma reverência e um chapéu que quase toca o chão, e um sorriso digno de sapo. Estranhamente, assim como não tivera nojo da carcaça grotesca e sem vida, sente-se atraída por essa bela entidade humanóide e corre em sua direção, recebida afetuosamente por um abraço caloroso. Uma vez separados, o sapo começa falando. Agradece o favor que lhe foi prestado. No momento em que o atingira, fugia de uma cobra caçadora. Aguardava-lhe uma morte lenta e sofrida. Dolorosa. Não que a cobra fosse má, mas era necessário e ele sabia disso. Mesmo assim, fugia, pois isso também era necessário e a cobra também o sabia. E ela, inocente e inconsciente, oferecera-lhe uma oportunidade de libertação. "Mas eu te matei", retruca ela. "Matou sim, mas libertou também, acima de tudo. Saiba que sequer senti dor, tão rápido foi. Uma leve sonolência e, estranhamente, de repente sentia-me leve e brilhante e saí a saltitar. Não via mais a cobra, imagino que sua presença a tenha afugentado. E estranhamente, tive vontade de voltar para lhe agradecer, e digo estranhamente, porque até então nunca tinho tido vontade. Apenas supria necessidades. E foi então que entendi." E então, ele explicou.

Levou a menina a passear. Mostrava-lhe um mundo...estranho...diferente. As cores vibravam e cantavam. Os animais falavam e gesticulavam. As árvores bailavam. E os poucos homens presentes harmonizavam. E o galante animal explanava que aquele era o paraíso. Um deles. Ali, onde se encontrava, podia ser feliz e se dedicar às suas composições coaxantes. Podia até mesmo executá-las sem ser importunado. E tinha oportunidade de transmiti-las aos seus amigos sapos que ainda eram verruguentos, embora nem sempre conseguisse fazê-lo com a fidelidade que desejava. E a harmonia reinava num ambiente de diversidade e celebração. Explicou-lhe, também, que fora seu toque mágico que o trouxera de volta à vida. A esta vida. Mais que seu toque, fora sua fé e sua imaginação, sua imagem em ação, sua vontade de dar vida que permitira que um pobre gosmento e verde anfíbio se levantasse como um imponente e nobre bípede coaxante. E então, começou a lhe explicar o poder das imagens ativas. O poder da imaginação. O poder da criação. Disse-lhe que cada ser daquele pequeno paraíso fora criado por uma mente. Alguns dependiam de terceiros, outros eram criadores de si próprios, verdadeiros avatares do mundo real enviados para um mundo ainda mais real. E explicou ainda sobre a vida e a morte. Sobre o tempo de nascer e retornar. Sobre a criação e a destruição. Sobre a vida que existia acima da vida. E então ela bailou. Cantou. Compôs. Viveu. Entendeu. Criou. Conheceu. E assim foi até que começou a se sentir cansada. Recostada em uma árvore que lhe acariciava os cabelos, fechou os olhos e cochilou brevemente.

Abriu-os novamente quando o sol aqueceu seus pés. Algum tempo até se acostumar à luz e então reconheceu-se dentro do quarto que lhe era designado naquela casa de retiro familiar. Sentou-se na cama, sorridente, um sorriso amplo prestes a se desfazer, quando começasse a perceber que sonhara e fantasiara. Mas antes que o sorriso começasse a esmorecer, um rastro brilhante chamou sua atenção. Pó de fada. Um rastro que levava o pé da cama até a janela. No chão, onde começava o rastro, um chapéu panamá. Na janela, um graveto. O mais retilíneo ao alcance da mão. E o sorriso, longe de se apagar, inflamou como uma estrela que nasce. Digno de um sapo. Tomando o chapéu em uma mão e a vara mágica em outra, desceu escada abaixo. E uma mãe, que, juro, fazia o possível para ser a melhor, se esforçava por manter uma postura firme e ensaiava um não disciplinador o suficiente para manter a privação da bicicleta, ficou sem entender quando uma menina sorridente passou por ela correndo.

A menina tudo tocava. E onde seu graveto quase retilíneo tocava nasciam flores. Sapos gosmentos. Sapos bailantes. Cães uivantes. Gatos larápios. Homens baixotes. Árvores centenárias. E quando, de tempos em tempos, voltava o rosto em direção ao caminho já percorrido, via claramente toda sua criação. Tão claramente quanto via sua mãe com uma interrogação maior que o sorriso de um sapo. E então, sorriu-lhe, e voltou ao seu trabalho de criação. Pouco lhe importava que nem todos pudessem ver seu mundo. Ele existia e não dependia de ninguém para isso, apenas dela. Aprendera que é assim que começam as grandes criações. E a mãe, pobre mãe, ficou a observar a filha se afastar, com um não pendurado na ponta da língua, quase caindo, inutilizado. Ficou pensando que deveria ter jogado fora aquele graveto esquisito, sem recordar a indelicadeza com que o retirara da mão da pequena na véspera. Por um breve momento, viu um pó brilhante e gracioso se desprender da ponta do graveto. Coçou os olhos e repetiu para si mesma "Pare de fantasiar, você já não é mais criança." E não viu mais pó algum. O que ficou sem entender, e que provavelmente não acreditaria quando ouvisse a explicação da filha, era onde raios ela arrumara aquele chapéu que levava na mão...