Porque há instintos...

Ela dormia. Profundamente. E ele ali, a observá-la. Acompanhava sua respiração, movimentos lentos e profundos, suaves. Inconscientemente, respirava no mesmo ritmo, enquanto desenhava aqueles traços finos, delicados e sutis em seu pensamento. Fixava em sua memória aquele rosto único, angelical, quasidivino. Seus olhos percorriam aquele corpo parcialmente coberto por uma manta e admirava aquelas curvas, tocando-as. Mentalmente. Não queria perturbar aquele sono quasiperfeito. Ocasionalmente, não resistia, e afastava aquela mecha de cabelo que insistia em cair sobre aquele rosto de feições artísticas. Um toque mais leve que um sopro de brisa no campo. E a observava, fixamente, continuamente. Quase que hipnotizado. Completamente delirante. E ali, cultuando aquela obra-prima divina, adormeceu, enfim.

Ela não dormia. Mantinha os olhos cerrados, mas estava desperta. Como se meditasse profundamente. Sua respiração, lenta e profunda, parecia elevar sua mente ao máximo da percepção. E todo seu corpo ia junto. Sabia que ele a observava. E gostava disso. Sentia todo seu corpo vibrando com o desejo que irradiava dele. Arrepiava-se quando sentia aquele dedo leve como uma pluma a tocar-lhe os cabelos. Quase era capaz de perceber aqueles olhos a percorrerem cada curva de seu corpo. Sentia e vibrava cada segundo como se fosse uma hora. Nunca antes uma noite fora tão surpreendente quanto aquela.

Oito horas da manhã. Do dia seguinte. Naquele aeroporto, um tanto quanto distante daquela cama, uma auxiliar de higiene lamenta sua árdua vida ao se deparar com toda aquela tinta vermelha misturada a mechas de cabelo desproporcionais, espalhando-se pelo banheiro feminino. Se chegasse apenas alguns minutos antes, veria uma ruiva desconhecida e irreconhecível deixando o recinto. Quase irreconhecível, na verdade. Pois quem olhasse em seus olhos a reconheceria imediatamente. Viúva negra era o apelido designado pela mídia declaradamente sensacionalista e também adotado pela mídia discretamente sensacionalista. Doze vítimas, até o momento. Isso é, doze vítimas atribuídas a ela, mas somente a própria sabia o real número de homens que entregaram suas vidas em seus braços. Literalmente. Em comum o fato de que todos partiram sorrindo. Era assim. Sentia nojo dos homens e seus sentimentos e atos carnais e superficiais. Procurava aquele que fosse diferente e, aqueles que não o eram, bem... não eram merecedores de tê-la como troféu. Agora, ainda estava confusa. Não entendia. O último, não fora igual. Mas também não sabia dizer se fora diferente. E, enquanto pensava e tentava entender, sorriu. Por baixo dos grandes óculos escuros, viu o próximo candidato a observá-la. E ali, naquele portão de embarque, enquanto ainda tentava entender o que era incapaz de explicar, observou o próximo candidato à diferença se aproximando, após receber aquele sorriso permissivo. E assim, tal e qual o caçador que se finge manso para atrair a caça, ela recebe aquele cortejo. Busca uma diferença, mas sabe que vai encontrar o mesmo. Somente aquele que não foi igual encontrou um espaço verdadeiro em seu pensamento. Diferente deste, que, após poucos minutos de conversa, já tem seu destino definido. Uma manchete, sensacionalista ou não. E ela lamenta. Sinceramente. Gostaria que fosse diferente. Mas, infelizmente, certos instintos são inevitáveis.

Dez horas. Da manhã daquele mesmo dia seguinte. Na sala que antecede a cama, entra a empregada. Garrafas de vinho e embalagens de chocolate. E um sorriso irônico. Já sabia que, naquela cama, encontraria uma jovem ex-donzela, seminua. Ou completamente nua. E, delicada porém definitivamente, era sua a tarefa do adeus. Gostava de seu patrão. Era bom e generoso para com ela. Não concordava com seu estilo de vida, mas não cabia a ela questionar a hierarquia superior. Dirige-se ao quarto, automaticamente, meditando e recolhendo o que encontra pelo caminho. E então, ao abrir a porta, pára, subitamente. Surpresa. Confusa. Numa caricaturesca cena onde seu queixo tocaria o chão se não estivesse preso por ligamentos. Quem dorme é o patrão. Numa cama obviamente desarrumada por dois corpos. Dorme, é apenas uma forma de descrever. Na verdade, ele parece... estático... mais que o normal. Parece... não respirar. Parece... Engasgo. Tosse. Respiração profunda. De ambos. Ele, despertanto. Ela, aliviada. Ele se vira e palpa a cama. Vazia. Ainda sente o perfume dela no travesseiro. Lamenta. Sinceramente. Infelizmente, alguns instintos são inevitáveis. Já tivera muitos corpos em sua cama, mas nunca o mesmo corpo por mais de uma noite. E ali, pela primeira vez, desejou novamente aquele corpo. Não pela carne, mas pelo conteúdo. Porque, felizmente, há sentimentos que superam até mesmo instintos inevitáveis. E aquele sentimento de plenitude, inédito, inexplicável, atingido somente com uma presença, sem corpo e sem contato, sem posse. Um toque de espírito, literalmente. Ansiava novamente por aquele toque, por aquela presença. Por aquele sentimento. Mas aquela entidade agora intangível se fora e, aos poucos, inconscientemente, ele permitia que o instinto reassumisse o controle. Longe dali, a dez mil pés de altitude, outro espírito se deixava dominar pelo instinto novamente. Mas levaria consigo para sempre aquele sentimento. Ele, no chão, nem mesmo imaginava que sua vida fora poupada ao dar àquela alma um sentimento de esperança. Esperança de que nem tudo era igual. Porque, ainda que existam instintos inevitáveis, há sentimentos que superam tudo.

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