Reviravolta

"...mas pode me chamar de reviravolta." Foi só o que ele entendeu. Abriu os olhos e levantou a cabeça. E não entendeu o que viu. Parecia uma silhueta de mulher, envolta em um manto quasibranco, com uma cor parecida com algodão cru, mas a suavidade e a delicadeza de um tecido élfico daqueles que só se imagina em histórias de fantasia. Mas não se viam feições. Não se viam detalhes. Era uma voz doce e encantadora, melodiosa, transmitia-lhe paz e segurança, mas não conseguia vislumbrar a boca de onde partia. Não conseguia ver os olhos que sabia estarem a observá-lo. Estava sentado em uma posição confortável e, desistindo de reconhecer aquela que se encontrava diante de seus olhos, desviou o olhar e buscou identificar o entorno. Foi então que se confundiu ainda mais. Não reconhecia aquele ambiente. Sequer havia algo para ser reconhecido. Não via móveis, nem paredes, nem pessoas. Não havia quadros ou pontos de referência. Havia apenas... árvores. Estranhamente, estava sentado em uma poltrona feita de árvores... Não de madeira cortada, mas de árvores, propriamente ditas. Identificou duas, e talvez uma terceira, e sentava-se confortavelmente sobre elas, todo o corpo apoiado, mais macia que qualquer colchão que já houvesse experimentado. Pareciam ter sido moldadas, torcidas, direcionadas para que assumissem aquela posição. Ergueu os olhos novamente e outra vez encarou aquela figura. Seus olhos estavam se habituando lentamente àquele ambiente e, aos poucos, via com um pouco mais de clareza. Mas ainda não via feições.

"Quem é você?" perguntou ele, tentando entender melhor o que lhe acontecia. "Meu nome é vida, embora alguns me chamem caminho, oportunidade, experiência, destino e muitos outros nomes. Mas hoje, você pode me chamar de reviravolta." E enquanto ele ouvia, e não compreendia, embora aquela figura não pudesse ser mais clara, forçava a memória e buscava as lembranças mais recentes. Há um tempo que parecia uma semana atrás, lembrava-se da internação. Pneumonia. Tudo tem uma primeira vez, ainda que seja aos sessenta e muitos anos. Fora internado, a pedido da médica que o atendeu na urgência daquele centro de referência, em um quarto com outros três colegas enfermos. Dois dias depois, segundo era capaz de calcular, lembrava-se de uma sensação densa, calafrios e tremores, algumas coisas que supostamente não deveria ver, muita tosse, dor no peito, falta de ar. Fora então encaminhado a um tratamento mais especializado em outro andar, onde passaria a receber atendimentos mais freqüentes e uma atenção mais intensiva. Melhorou, e bastante, até onde era capaz de recordar. Não havia mais delírios e a tosse, ainda que persistente, agora era uma aliada a limpar-lhe os pulmões. Mas a última recordação que levava registrada era de uma dispnéia súbita e intensa, como nunca sentira antes. A vista meio turva, mal conseguindo movimentar os braços, e o ar que parecia não ser suficiente. Chamou uma enfermeira, que chamou um médico, que chamou toda a equipe. E então... e então... não sabia dizer. "Foi isso então, eu morri." afirmou ele, falhando em formular uma pergunta. "Não. Pelo menos, ainda não" foi a resposta, direta e surpreendente. "Você ainda não morreu e nem vai morrer tão cedo, se souber aceitar o que lhe for pedido e o que lhe for oferecido." E então ele a encarou novamente. Não havia uma expressão facial que pudesse interpretar, mas, de alguma forma, sabia que ela falava sério. Sabia que não era uma promessa vã. Sabia que deveria ouvir.

"Mas eu já estou velho, não há nada que se possa querer de mim ou que eu possa esperar do mundo. Já vi tudo que poderia ter visto, já experimentei tudo que poderia ter experimentado. Sei que estou longe de conhecer tudo que há no mundo, mas tudo que me era possível viver, eu vivi" argumentou ele, sensato como nunca fora antes. "O que é o tempo, senão um sistema rudimentar de calcular as voltas que seu planeta dá em torno de uma estrela? O que é o tempo, senão uma série de cálculos e hipóteses e suposições que perdem toda sua validade quando uma força maior muda o eixo do astro onde vive? O que é o tempo, senão uma forma de discriminação discreta e aceita?" Silêncio, foi a única resposta que encontrou. "O passado é uma lembrança, muitas vezes contaminada pela parcialidade da memória. O futuro é uma esperança, muitas vezes deturpada pela ânsia do desejo. Só o que existe é o presente, em todos os mundos e em todos os planos. E a duração máxima que o presente pode ter, é o agora. Nem mais, nem menos, apenas isso. E não está em suas mãos determinar quanto é agora. Nem mesmo nas minhas. É algo tão grande que eu sequer sou capaz de lhe explicar em palavras inteligíveis. E hoje, eu estou aqui para lhe dizer que o seu agora ainda existe, e que pode continuar existindo por um prazo indeterminado, se você aceitar a nova realidade que lhe trago."

Estava incomodado. Muito incomodado. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Não sabia onde estava. Não sabia quem era aquela ou o que ela esperava dele. Enquanto pensava nisso, ela se aproximou. Sentia-se assustado, mas, de alguma forma que não entendia e por algum motivo que não sabia, confiava que ela não lhe faria mal. "Veja" disse ela, enquanto aquelas mãos que mais pareciam fachos de luz tocavam sua testa. E então ele viu, diante de si, como se estivesse olhando uma teletela. Viu a si mesmo, deitado na segunda cama que ocupara no hospital. Que ainda ocupava, segundo a visão lhe informava. Sondas e agulhas introduzidas onde antes havia nada, soníferos injetados regularmente em suas veias, e seu corpo se comportando como se fosse recheado de estopa e serragem. Via as pessoas lhe moverem braços e pernas, via a si próprio sendo trazido de lá pra cá e de volta pra lá, deitado de lado, de frente, seus braços se movendo pelas mãos de outrem, até mesmo sua respiração parecia ter sido terceirizada. E não sentia nada disso. Não sentia mãos em sua pele, não sentia tubos em sua boca, não sentia nada do que via. E se antes não entendia, agora menos ainda. "Sou eu?" foram as duas únicas palavras que foi capaz de formular. "É o seu corpo, se é isso que quer dizer. Você está aqui, comigo" foi a resposta, tão impactante quanto um balde de gelo numa criança dormindo. "E o que isso tudo significa?" tomou coragem para perguntar. "Significa que sua vida, como você conhecia, está por um fio. Literalmente. Nada será como antes, tenha certeza disso. Se aceitar as condições que lhe proponho, voltará a assumir o controle do seu corpo, mas tudo estará mudado. Se não, daqui partirá em direção ao seu merecido lugar." "E quais são as condições?" perguntou, porque, agora, aquilo lhe interessava. Estava negociando e, isso, sabia fazer muito bem.

"Humildade" foi a resposta. "Como assim?" perguntou novamente, entendendo cada vez menos. "Foste um grande patriarca, no seu mundo. Agora, estou a lhe oferecer a oportunidade de ser um patriarca ainda maior, em ambos os mundos. Terá a oportunidade de crescer a si mesmo, fortalecendo sua humildade e sua resignação, ao mesmo tempo em que dará à sua família a oportunidade de crescer junto, ensinando-lhes o valor do amor e do trabalho." "Mas isso eu já fiz. Todos trabalham, todos nos amamos. Temos problemas, logicamente, toda família os tem, mas somos uma boa família, íntegra, honesta e unida. Como posso ensinar mais?" retrucou ele. "Exercitando a humildade. Sua família é realmente um exemplo, e exatamente por isso está recebendo a oportunidade de concluir seu crescimento nesse mundo com a experiência máxima que a Vontade Suprema pode lhos oferecer, o amor, o verdadeiro amor, a resignação, a aceitação, a doação" disse-lhe a vida. "E como serei capaz de proporcionar tudo isso a eles?" "Confiando. E aceitando." "Mas e" "Não existe mas", interrompeu-lhe bruscamente a entidade luminosa, impedindo que concluísse "isso não é uma barganha, isso é uma escolha. Confie e aceite, e retornará para concluir seu trabalho perante os seus. Caso contrário, será levado a outros caminhos para que possa atingir o mesmo fim." E então ele enfim entendeu. Não confiava, pelo menos não plenamente. Mas, por algum motivo, aceitou. Pelo apego, pelo vício, pela vontade de preservar aquela que chamava de vida, aceitou. E quando encarou novamente a reviravolta, não foi capaz de formular uma resposta. Via-a diante de si, mas agora estava em outro ambiente. Olhou em volta e reconheceu a unidade daquele hospital onde seu corpo recebia tratamento. "Ele acordou, que bom" foi o que ouviu, dessa vez vindo de uma boca que se movia e de um rosto que reconheceu como um dos profissionais daquela instituição. "Vamos tirar isso da sua boca agora" foi a frase seguinte. E então, com uma delicadeza brutal, algo foi arrancado de si. Sua garganta arranhou, seu estômago nauseou e seus olhos lacrimejaram, mas aquilo foi arrancado de si. Respirou fundo e sentiu novamente o ar fresco a lhe inflar o peito, ainda que com alguma dificuldade. Aquela que lhe fizera a proposta ainda estava ali, luminosa e sem feições, tal e qual a conhecera. Ainda não entendia tudo que acontecia, mas sabia que estava vivo, e então relaxou e dormiu.

Acordou quando sua família o tocou. Sua neta caçula e a mãe dela, a filha que ainda vivia nos arredores. Acariciaram-lhe os cabelos gentilmente, beijaram-lhe o rosto, entre lágrimas de ambos os três. Ele tentou falar, mas sua boca se moveu afônica. Forçou novamente, mas não foi capaz de formular sons coordenados. "Descanse, papai, o médico logo vai vir e vai explicar o que aconteceu" confortou-lhe a filha. Minutos depois, conforme prometido, o médico se aproxima do leito e aborda delicadamente a família em momento íntimo. "Olá. Como estão vendo, ele melhorou bastante. Conseguimos extubá-lo essa manhã e até agora, tudo corre bem. Ainda está muito fraco e vai precisar de algum tempo pra se recuperar, mas respira sem dificuldade e já não depende de tantos medicamentos. Aos poucos, vamos tirando ainda mais e logo ele vai para um quarto de enfermaria." "E o derrame?" pergunta a neta. "Bom, essa é parte mais delicada... Ainda não sabemos toda a extensão da lesão no cérebro, por isso é difícil dizer. Ele parece entender tudo que falamos, mas não consegue falar, ficou afásico, e ainda não sabemos exatamente como os movimentos de seu corpo foram afetados, temos que aguardar a evolução para que possamos afirmar com certeza. Com o tratamento adequado podemos recuperar muita coisa, mas é impossível dizer exatamente o que vai acontecer." E foi nessa hora que ele parou de ouvir. Chorava, silenciosa e discretamente. Olhou para o alto, como quem pede socorro. Não era isso que desejava, não era essa sua vida. E enquanto buscava entender o que acontecera, percebeu que a reviravolta ainda estava ali, a observá-lo. E então, ouviu sua voz uma última vez "Humildade e resignação, foi o que você escolheu aprender. Confie naqueles que ama, e permita-lhes que aprendam o valor do amor, da doação e do trabalho. Confie naquele que me enviou", enquanto sua imagem se tornava cada vez mais sutil até desaparecer por completo.

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