"Significa que você tem um dom, uma coisa que te torna especial" foi a resposta mais simples que conseguiu formular. "Quer dizer que eu sou melhor que os outros?" E o avô riu-se ao observar a expressão de interrogação e exclamação do pequeno. "Eu não quero ser melhor que ninguém, vovô. Outro dia, lá na escola, ouvi um amigo contando que o irmão dele apanhou de outro menino só porque tirou uma nota boa. Não quero apanhar!" E a risada evoluiu para uma gostosa gargalhada, daquelas que só a ingenuidade de uma criança é capaz de provocar naqueles que já se esqueceram da simplicidade do mundo. Mas aquele respeitável senhor se controlou ao ver a expressão do garoto começar a mudar. "Não, meu filho, você não vai ser melhor que ninguém, não se preocupe. Vai ser apenas... diferente, digamos. Você vai ver coisas que os outros não vêem", explicou. "Vou ver fantasmas, vovô?!" perguntou-lhe um par de olhos esbugalhados. "Não, querido, não é bem assim. Na verdade, você vai ser capaz de ver o coração das pessoas", retrucou o sábio idoso, contendo outro acesso de gargalhadas. E então, um sorriso de exclamação pergunta "Então eu vou ter visão de raio-x, igual super-herói?!" Sem conseguir se conter, começou a responder ainda rindo "Quase isso, pequeno. Você não vai ter visão de raio-x pra ver através das paredes, mas vai ter um jeito diferente de ver, vai entender as pessoas, sentir o que elas sentem e, às vezes, até ouvir seus pensamentos." Voltando à face de interrogação, a criança pergunta "Vou ter telefonopatia?"
"É mais ou menos isso, meu neto. É um pouco mais, na verdade, mas ainda é muito cedo pra você entender tudo. Mas você até já tem um pouco, quer ver? Olhe nos meus olhos e tente descobrir o que estou pensando." E então os dois extremos se encararam. E o pequeno, subitamente, parte em direção ao corredor e alcança aquele velho relógio e, ao abrir o fundo falso dentro da rara peça, exclama inocentemente "Você mudou o esconderijo dos chocolates!" "Como você sabia que eu escondia aí?" perguntou-lhe o ancião, com um sorriso compreensivo nos lábios. E então, olhos tímidos e zigomas vermelhos, falando mais para si que para outrem, o pequeno diz "Eu... eu... sonhei que o senhor mostrava pra mim. Daí, quando acordei, vim ver se era verdade e tinha um monte de chocolate aqui... Todo dia eu como um, mas juro que é um só por dia!" Mudando de compreensão para satisfação, o avô questiona "E como você sabia que eu tinha mudado?" "Não sei... eu sabia, só isso" responde o neto com expressão confusa. E então, forçando uma seriedade que o momento não favorecia, o avô pergunta novamente "E você consegue descobrir onde eu escondi agora?" E o menino, encarando-o com seriedade, repentinamente ilumina o próprio rosto com um sorriso de satisfação e sai correndo em busca daquele segredo compartilhado no silêncio.
E o velho sorri, satisfeito. Satisfeito consigo mesmo. Mais ainda com seu pequeno sucessor. Conseguira cumprir seu primeiro objetivo, despertar uma curiosidade, um instinto, uma intuição. Oferecera ainda um pouco de esclarecimento que, aos poucos, amadureceria, juntamente com o portador daquela luz. Sentia-se feliz por poder orientar esse potencial em direção ao caminho que vira em seus sonhos. Sentia-se feliz por poder compartilhar aquele dom com alguém que lhe era tão querido. Sabia que seu tempo era pouco, mas agora tinha certeza que era também suficiente. Suficiente para ensinar àquela luz que seu caminho era o amor. Suficiente para evitar que aquele iluminado cometesse os erros que ele próprio cometera, permitindo-lhe procurar novos erros. E então, levantou-se e dirigiu-se à porta de saída. Precisava comprar alguns livros que lhes seriam úteis. E mais chocolate também...
Telefonopatia
"Você é um menino de luz", disse-lhe o avô octagenário. E aquela criança de apenas poucos anos ficou a encará-lo, tentando entender o que aquilo significava. "Como assim, vovô? O que é ser um menino de luz?" E o velho homem sorriu. Sabia que ainda era cedo. Sabia que ele não entenderia plentamente aquilo que iria ouvir. Sabia que ele sequer lembraria de tudo que lhe seria dito. Mas, acima de tudo, sabia que seu tempo era pouco e que deveria fazer o possível por aquela criança.
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