Era só um elefante...

"Amor, acho que escutei um barulho lá fora" disse ela, com olhos semicerrados. "É só impressão querida, pode voltar a dormir" respondeu ele, sonolento. "Mas amor, eu tenho medo... e se for um ladrão?" "Se for, ele é que tá lascado. Nós moramos no bairro mais seguro da cidade, temos alarmes nas portas e janelas e uma dúzia de câmeras de vídeo. Pode dormir sossegada." "Mas amor..." "Grunfglorbhsfff" grunhiu o companheiro, enquanto se levantava. Barulhos e sons, botões, portas, fechaduras, silêncio. Poucos minutos depois, ele volta "Era só um elefante violeta, meu anjo. Pode voltar a dormir. Vou lá fora fumar um cigarro pra aproveitar que levantei e já volto" disse abrindo a gaveta e retirando algo de dentro. "Traz um copo d'água na volta..." "Algo mais?" "...com um pouco de groselha..." "E...?" "...umas gotinhas de limão..." "Tá bom... Sempre assim, né?! Tudo que você me pede sorrindo, eu faço chorando. Há onze anos." "Doze, você sempre erra!" "Onze, meu amor. No primeiro, eu fazia sorrindo..." Dois sorrisos, carinhosos, um dele e outro dela. Doze anos. Praticamente o tempo de uma vida. Doze anos de partilha e companheirismo. Sempre o mesmo bom humor, sempre a mesma fragilidade. No começo, era tudo surpreendente. Por começo, entenda como dois anos, talvez três. Depois, uma certa rotina foi criada, mas as surpresas esporádicas sempre reavivam o interesse e a curiosidade, de ambos os lados. Ambos achavam incrível o fato de, mesmo após tanto tempo, ainda encontrarem novidades no outro. E ambos também sabiam que ainda havia muito a ser revelado, embora não soubessem se um dia o fariam.

Doze anos. Era o tempo que ela escondia aquele segredo dele. E muitos anos antes já carregava aquele sigilo. Por fora, funcionária do alto escalão de um ministério. Cargo de confiança. Muita confiança. Chegava a passar quase vinte dias em atividade contínua, viajando. Seguidos de alguns dias em casa, de folga relativa, apenas preenchendo formulários e relatórios. Geralmente uma semana, às vezes um pouco mais. Raramente, bem mais. Na realidade, a coisa era um tanto quanto diferente. Quando ele se levantou e saiu pela porta do quarto, um movimento rápido de uma mão ágil trouxe uma pequena pistola calibre vinte e dois do fundo falso da gaveta do criado mudo até embaixo do travesseiro. Tanta fragilidade tinha dois motivos. O primeiro, óbvio, era sentir-se cuidada, afinal de contas, ela era uma mulher! O segundo, sigiloso, era dispersar a atenção. Assim, ficava quase impossível desconfiar do trabalho de infiltração e espionagem que executava. Trabalhava para o governo, sim, mas sua função era outra. Especialista em contra-espionagem. A melhor. O crachá daquele ministério era a camuflagem perfeita, dando-lhe status de 'auditora' para penetrar qualquer esfera do governo em qualquer local do país. Tanto medo, na verdade, era apenas a cautela necessária a quem precisa sobreviver. Não temia ataques, saberia revidá-los, pois fora treinada para tal. Mas, ainda assim, preferia a cautela naqueles espaço onde vivia sua fantasia. Ou sua realidade, já não sabia mais dizer. Cada vez que se via em um mundo, o outro parecia apenas uma fantasia, um sonho distante. Era nisso que pensava enquanto ele saía com o cigarro na mão. De lá, a marca da aliança no quarto dedo esquerdo lhe dava segurança dessa verdade. De cá, a pistola no criado mudo lhe assombrava com a outra verdade. Do mesmo fundo falso, puxou o monitor portátil que só ela sabia existir. E observava seu protetor doméstico pelas câmeras de segurança. Adorava seu bom humor e seu riso fácil. Válvulas de escape de uma vida estressante, dizia ele. Via-o na calçada, falando sozinho, gesticulando energicamente como se falasse com alguém fora do vídeo. Ela o via fazer isso com certa freqüência, e, quando enfim teve coragem de questioná-lo, "Sou eu gritando com funcionários imaginários, pra não fazer isso na empresa" foi a resposta ouvida. Coitado. Tão estressado, por tão pouco. Se ao menos ela pudesse compartilhar um pouco do seu mundo com ele. Se ao menos ele imaginasse a realidade surreal que ela vivia. Às vezes, sentia-se a personagem de um filme. Mas sabia que era tudo verdade. E sonhava com o dia em que ele descobriria tudo, meio por acidente. Aí, enfim poderia desabafar e compartilhar. Mas sabia que era um sonho, apenas. Mas um dia, quem sabe, teria coragem de revelar a surpresa máxima que ela levava. Um dia, quem sabe...

Doze anos. Era o tempo que ele escondia aquele segredo dela. E uma vida inteira antes já carregava aquele sigilo. Por fora, um grande executivo da indústria alimentícia. Dono de toda uma cadeia produtiva poderosíssima, herdada de seu pai e gerida ao lado de seu irmão. Ele cuidava dos negócios na cidade, enquanto o outro geria os investimentos no campo. Trabalho estressante. Muito estressante. Piadas e gracejos constantes eram uma forma de desabafo e alívio. Uma forma de dizer a verdade sem que os outros suspeitassem. Tudo começara antes mesmo de seu nascimento, quando seu pai herdou aquele maldito guarda-roupa de um parente europeu tão distante que sequer tinha o mesmo tipo sanguíneo. A empresa de gêneros alimentícios era real, uma excelente camuflagem para o verdadeiro trabalho executado, pela enésima geração consecutiva daquela família. Aquele país supostamente imaginário demandava uma atenção verdadeira demais. "Dizem que os elefantes nunca esquecem, então você deve ser uma anta, seu paquiderme inútil!" vociferava ele, contendo o volume de sua voz para que ela não ouvisse. E o pobre elefante, de violeta se tornava quase vermelho, de tanta vergonha e medo. Abaixava a cabeça e encolhia a tromba, e quando ensaiou uma resposta excusa e tímida, foi interrompido "Olha," dizia ele, entre irritado e compassivo, "eu sei que não é fácil pra vocês, mas eu preciso da colaboração de todo mundo pra fazer isso dar certo! Já pensou se descobrem você aqui? É zoológico na certa! Eu já cansei de repetir, quando o carro vermelho estiver na garagem, não é pra se aproximar! Significa que minha esposa está em casa." Pausa. Precisava de fôlego e de algumas tragadas. E o paquiderme, ainda acuado, sabiamente optou pelo silêncio. "Eu não tenho como te colocar em casa, não hoje. Ela chegou ontem e ainda não tem data pra viajar de novo. Você lembra onde é a fazenda?" E, vendo o pobre animal se encolher até quase o tamanho de uma formiga, explodiu de novo "Mas puta que pariu, tem certeza que você é um elefante? Como você lembra de comer todo dia? Presta bem atenção, vou explicar de novo. Passa o muro do condomínio, aqui atrás de casa, vira à direita e segue a estrada até a bifurcação. Depois segue à esquerda, tá me ouvindo?! Esquerda! E vai até o fim que a estrada termina na fazenda. Eu tô sem tinta vermelha pra te esconder na plantação de tomate, mas, por sorte, os figos tão maduros, então você se esconde no meio do pomar de figos, entendeu? E lembra de ir pelo lado de cá, que é onde não tem câmera. E fala praquele macaco imbecil que eu sei que ele tá aqui, não adianta tentar se esconder. Leva ele junto e fala praquele banana que se ele atacar meus maracujás de novo, eu corto fora as bolas dele! Amanhã eu arrumo uma desculpa e vou até lá terminar de resolver isso." E observava aquela imensa massa arroxeada se afastar enquanto terminava de fumar seu cigarro. Já dentro da cozinha, enquanto preparava a groselha, pensava no quanto gostaria de poder compartilhar aquela realidade com sua amada. Via-a em seu mundo ministerial, burocrático e monótono, e tinha medo de qual seria sua reação se um dia ela descobrisse. Mas, ao mesmo tempo, torcia para que ela descobrisse, meio por acidente, pois daí seria obrigado a revelar aquela verdade. "Uma verdade cada vez mais difícil de esconder" sussurrou para si mesmo, enquanto se encaminhava para o quarto. Abrindo a porta do quarto, ouviu a gaveta do criado mudo se fechando. "Espantou o elefante?" perguntou ela. "Levou um esporro tão grande que de roxo saiu branco, coitado." E, enquanto a abraçava, já deitado novamente, pensava no quanto a amava. E, pela primeira vez em doze anos, pensava no quanto desejava que ela viajasse logo. Acima de tudo, queria tê-la por perto. Mas, infelizmente, com ela por perto, seria difícil dar um destino àquele atum escondido na caixa d'água sem levantar suspeitas...

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