"Minha filha que perigo. Você podia ficar doente. Onde já se viu menina ficar brincando com sapo morto. Não, não tem discussão. Já pro seu quarto e fique lá até amanhã. E vai ficar até depois de amanhã sem a bicicleta. Um perigo, sair andando sozinha. E se fosse uma cobra?!" E a pobre criança se retira, escutando sem reagir, ainda tentando entender um sapo morto e um rastro de pó de fada. E, no castigo, só lhe resta dormir. E sonhar. Estranhamente, com um sapo. Parecidíssimo com aquele atropelado, mas diferente. Um tanto quanto...humano, talvez. No mínimo, bípede. E falante. Muito falante. E galante também, como todo sapo há de ser sob a carapuça de nojeira que o reveste. Aguarda a menina sentado sobre uma pedra, perna direita cruzada sobre a esquerda e um chapéu panamá em uma das mãos. Ou patas, não sei explicar. É um tanto quanto confuso. Ao vê-la, uma reverência e um chapéu que quase toca o chão, e um sorriso digno de sapo. Estranhamente, assim como não tivera nojo da carcaça grotesca e sem vida, sente-se atraída por essa bela entidade humanóide e corre em sua direção, recebida afetuosamente por um abraço caloroso. Uma vez separados, o sapo começa falando. Agradece o favor que lhe foi prestado. No momento em que o atingira, fugia de uma cobra caçadora. Aguardava-lhe uma morte lenta e sofrida. Dolorosa. Não que a cobra fosse má, mas era necessário e ele sabia disso. Mesmo assim, fugia, pois isso também era necessário e a cobra também o sabia. E ela, inocente e inconsciente, oferecera-lhe uma oportunidade de libertação. "Mas eu te matei", retruca ela. "Matou sim, mas libertou também, acima de tudo. Saiba que sequer senti dor, tão rápido foi. Uma leve sonolência e, estranhamente, de repente sentia-me leve e brilhante e saí a saltitar. Não via mais a cobra, imagino que sua presença a tenha afugentado. E estranhamente, tive vontade de voltar para lhe agradecer, e digo estranhamente, porque até então nunca tinho tido vontade. Apenas supria necessidades. E foi então que entendi." E então, ele explicou.
Levou a menina a passear. Mostrava-lhe um mundo...estranho...diferente. As cores vibravam e cantavam. Os animais falavam e gesticulavam. As árvores bailavam. E os poucos homens presentes harmonizavam. E o galante animal explanava que aquele era o paraíso. Um deles. Ali, onde se encontrava, podia ser feliz e se dedicar às suas composições coaxantes. Podia até mesmo executá-las sem ser importunado. E tinha oportunidade de transmiti-las aos seus amigos sapos que ainda eram verruguentos, embora nem sempre conseguisse fazê-lo com a fidelidade que desejava. E a harmonia reinava num ambiente de diversidade e celebração. Explicou-lhe, também, que fora seu toque mágico que o trouxera de volta à vida. A esta vida. Mais que seu toque, fora sua fé e sua imaginação, sua imagem em ação, sua vontade de dar vida que permitira que um pobre gosmento e verde anfíbio se levantasse como um imponente e nobre bípede coaxante. E então, começou a lhe explicar o poder das imagens ativas. O poder da imaginação. O poder da criação. Disse-lhe que cada ser daquele pequeno paraíso fora criado por uma mente. Alguns dependiam de terceiros, outros eram criadores de si próprios, verdadeiros avatares do mundo real enviados para um mundo ainda mais real. E explicou ainda sobre a vida e a morte. Sobre o tempo de nascer e retornar. Sobre a criação e a destruição. Sobre a vida que existia acima da vida. E então ela bailou. Cantou. Compôs. Viveu. Entendeu. Criou. Conheceu. E assim foi até que começou a se sentir cansada. Recostada em uma árvore que lhe acariciava os cabelos, fechou os olhos e cochilou brevemente.
Abriu-os novamente quando o sol aqueceu seus pés. Algum tempo até se acostumar à luz e então reconheceu-se dentro do quarto que lhe era designado naquela casa de retiro familiar. Sentou-se na cama, sorridente, um sorriso amplo prestes a se desfazer, quando começasse a perceber que sonhara e fantasiara. Mas antes que o sorriso começasse a esmorecer, um rastro brilhante chamou sua atenção. Pó de fada. Um rastro que levava o pé da cama até a janela. No chão, onde começava o rastro, um chapéu panamá. Na janela, um graveto. O mais retilíneo ao alcance da mão. E o sorriso, longe de se apagar, inflamou como uma estrela que nasce. Digno de um sapo. Tomando o chapéu em uma mão e a vara mágica em outra, desceu escada abaixo. E uma mãe, que, juro, fazia o possível para ser a melhor, se esforçava por manter uma postura firme e ensaiava um não disciplinador o suficiente para manter a privação da bicicleta, ficou sem entender quando uma menina sorridente passou por ela correndo.
A menina tudo tocava. E onde seu graveto quase retilíneo tocava nasciam flores. Sapos gosmentos. Sapos bailantes. Cães uivantes. Gatos larápios. Homens baixotes. Árvores centenárias. E quando, de tempos em tempos, voltava o rosto em direção ao caminho já percorrido, via claramente toda sua criação. Tão claramente quanto via sua mãe com uma interrogação maior que o sorriso de um sapo. E então, sorriu-lhe, e voltou ao seu trabalho de criação. Pouco lhe importava que nem todos pudessem ver seu mundo. Ele existia e não dependia de ninguém para isso, apenas dela. Aprendera que é assim que começam as grandes criações. E a mãe, pobre mãe, ficou a observar a filha se afastar, com um não pendurado na ponta da língua, quase caindo, inutilizado. Ficou pensando que deveria ter jogado fora aquele graveto esquisito, sem recordar a indelicadeza com que o retirara da mão da pequena na véspera. Por um breve momento, viu um pó brilhante e gracioso se desprender da ponta do graveto. Coçou os olhos e repetiu para si mesma "Pare de fantasiar, você já não é mais criança." E não viu mais pó algum. O que ficou sem entender, e que provavelmente não acreditaria quando ouvisse a explicação da filha, era onde raios ela arrumara aquele chapéu que levava na mão...
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