O sapo

Era uma vez um sapo. Um sapo como qualquer outro sapo. Desses ordinários que encontramos por aí, cheio de verrugas, verde e gosmento. Mas, embora comum, este sapo era diferente dos outros. Tinha algo que o tornava único, especial. Era um sapo atropelado. Mas até mesmo para um sapo atropelado, ele fugia do normal. Não era um sapo esborrachado, completamente destituído de forma por um pneu de carro. Fora atropelado por uma bicicleta. Ou melhor, por uma pequena bicicleta. Mais especificamente, por uma carruagem, de uma pequena cinderela, que aparentava seis ou sete anos de idade e corria por ali, naquele momento, passeando no sítio de sua família. Era um princesa e, no momento em que atropelara o sapo, fugia apressada de um baile antes que sua carruagem virasse abóbora novamente. Até sentir uma lombada sob as rodas de sua bicicleta. Quase caiu e não entendeu nada, pois passara ali havia poucos minutos, a caminho do baile, e não havia lombada alguma. Um breve pausa na fantasia e a pequena menina volta para investigar. E, retomando a fantasia, deixa cinderela partir e fica a fada madrinha. Tomando por vara de condão o graveto mais retilíneo ao alcance da mão, toca o sapo uma. Duas. Três vezes. Na quarta, ele salta antes que a vara o toque, deixando pra trás um rastro de pó de fada. E antes que pudesse comemorar, uma mão a traz de volta à realidade. Pela orelha. Pobre criança, é uma mãe preocupada, apenas, que se esforça em ser boa, segundo seu próprio conceito. Inconcebível sua pequena menina brincando com um sapo morto no meio de uma estrada de terra. Bicicleta em uma mão, punho da menina na outra, e a jovem senhora segue de volta em direção à casa. Desejosa de continuar a fantasia iniciada, porém mais desejosa ainda de não levar uma boa medida sócio-educativa, a ex-fada segue conduzida. Antes, porém, olha novamente em direção à lombada, e vê um sapo morto, com uma marca de pneu de cerca de cinco centímetros de largura dividindo-o ao meio. Exatamente ao meio. Ao seu lado, um rastro de pó de fada que segue em direção à mata.

"Minha filha que perigo. Você podia ficar doente. Onde já se viu menina ficar brincando com sapo morto. Não, não tem discussão. Já pro seu quarto e fique lá até amanhã. E vai ficar até depois de amanhã sem a bicicleta. Um perigo, sair andando sozinha. E se fosse uma cobra?!" E a pobre criança se retira, escutando sem reagir, ainda tentando entender um sapo morto e um rastro de pó de fada. E, no castigo, só lhe resta dormir. E sonhar. Estranhamente, com um sapo. Parecidíssimo com aquele atropelado, mas diferente. Um tanto quanto...humano, talvez. No mínimo, bípede. E falante. Muito falante. E galante também, como todo sapo há de ser sob a carapuça de nojeira que o reveste. Aguarda a menina sentado sobre uma pedra, perna direita cruzada sobre a esquerda e um chapéu panamá em uma das mãos. Ou patas, não sei explicar. É um tanto quanto confuso. Ao vê-la, uma reverência e um chapéu que quase toca o chão, e um sorriso digno de sapo. Estranhamente, assim como não tivera nojo da carcaça grotesca e sem vida, sente-se atraída por essa bela entidade humanóide e corre em sua direção, recebida afetuosamente por um abraço caloroso. Uma vez separados, o sapo começa falando. Agradece o favor que lhe foi prestado. No momento em que o atingira, fugia de uma cobra caçadora. Aguardava-lhe uma morte lenta e sofrida. Dolorosa. Não que a cobra fosse má, mas era necessário e ele sabia disso. Mesmo assim, fugia, pois isso também era necessário e a cobra também o sabia. E ela, inocente e inconsciente, oferecera-lhe uma oportunidade de libertação. "Mas eu te matei", retruca ela. "Matou sim, mas libertou também, acima de tudo. Saiba que sequer senti dor, tão rápido foi. Uma leve sonolência e, estranhamente, de repente sentia-me leve e brilhante e saí a saltitar. Não via mais a cobra, imagino que sua presença a tenha afugentado. E estranhamente, tive vontade de voltar para lhe agradecer, e digo estranhamente, porque até então nunca tinho tido vontade. Apenas supria necessidades. E foi então que entendi." E então, ele explicou.

Levou a menina a passear. Mostrava-lhe um mundo...estranho...diferente. As cores vibravam e cantavam. Os animais falavam e gesticulavam. As árvores bailavam. E os poucos homens presentes harmonizavam. E o galante animal explanava que aquele era o paraíso. Um deles. Ali, onde se encontrava, podia ser feliz e se dedicar às suas composições coaxantes. Podia até mesmo executá-las sem ser importunado. E tinha oportunidade de transmiti-las aos seus amigos sapos que ainda eram verruguentos, embora nem sempre conseguisse fazê-lo com a fidelidade que desejava. E a harmonia reinava num ambiente de diversidade e celebração. Explicou-lhe, também, que fora seu toque mágico que o trouxera de volta à vida. A esta vida. Mais que seu toque, fora sua fé e sua imaginação, sua imagem em ação, sua vontade de dar vida que permitira que um pobre gosmento e verde anfíbio se levantasse como um imponente e nobre bípede coaxante. E então, começou a lhe explicar o poder das imagens ativas. O poder da imaginação. O poder da criação. Disse-lhe que cada ser daquele pequeno paraíso fora criado por uma mente. Alguns dependiam de terceiros, outros eram criadores de si próprios, verdadeiros avatares do mundo real enviados para um mundo ainda mais real. E explicou ainda sobre a vida e a morte. Sobre o tempo de nascer e retornar. Sobre a criação e a destruição. Sobre a vida que existia acima da vida. E então ela bailou. Cantou. Compôs. Viveu. Entendeu. Criou. Conheceu. E assim foi até que começou a se sentir cansada. Recostada em uma árvore que lhe acariciava os cabelos, fechou os olhos e cochilou brevemente.

Abriu-os novamente quando o sol aqueceu seus pés. Algum tempo até se acostumar à luz e então reconheceu-se dentro do quarto que lhe era designado naquela casa de retiro familiar. Sentou-se na cama, sorridente, um sorriso amplo prestes a se desfazer, quando começasse a perceber que sonhara e fantasiara. Mas antes que o sorriso começasse a esmorecer, um rastro brilhante chamou sua atenção. Pó de fada. Um rastro que levava o pé da cama até a janela. No chão, onde começava o rastro, um chapéu panamá. Na janela, um graveto. O mais retilíneo ao alcance da mão. E o sorriso, longe de se apagar, inflamou como uma estrela que nasce. Digno de um sapo. Tomando o chapéu em uma mão e a vara mágica em outra, desceu escada abaixo. E uma mãe, que, juro, fazia o possível para ser a melhor, se esforçava por manter uma postura firme e ensaiava um não disciplinador o suficiente para manter a privação da bicicleta, ficou sem entender quando uma menina sorridente passou por ela correndo.

A menina tudo tocava. E onde seu graveto quase retilíneo tocava nasciam flores. Sapos gosmentos. Sapos bailantes. Cães uivantes. Gatos larápios. Homens baixotes. Árvores centenárias. E quando, de tempos em tempos, voltava o rosto em direção ao caminho já percorrido, via claramente toda sua criação. Tão claramente quanto via sua mãe com uma interrogação maior que o sorriso de um sapo. E então, sorriu-lhe, e voltou ao seu trabalho de criação. Pouco lhe importava que nem todos pudessem ver seu mundo. Ele existia e não dependia de ninguém para isso, apenas dela. Aprendera que é assim que começam as grandes criações. E a mãe, pobre mãe, ficou a observar a filha se afastar, com um não pendurado na ponta da língua, quase caindo, inutilizado. Ficou pensando que deveria ter jogado fora aquele graveto esquisito, sem recordar a indelicadeza com que o retirara da mão da pequena na véspera. Por um breve momento, viu um pó brilhante e gracioso se desprender da ponta do graveto. Coçou os olhos e repetiu para si mesma "Pare de fantasiar, você já não é mais criança." E não viu mais pó algum. O que ficou sem entender, e que provavelmente não acreditaria quando ouvisse a explicação da filha, era onde raios ela arrumara aquele chapéu que levava na mão...

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