Short Stories

Segunda-feira. Dia mundial da preguiça, dizem alguns. E lá estava ela, com aquela expressão cansada e abatida. Mais um serão à beira daquele leito. Há tantos anos que já perdera a conta. Há tantos dias que sequer sabia que era segunda-feira. Aquela parecia a rotina de uma vida inteira. Deixara de lado os próprios sonhos e desejos para se dedicar àquela causa. Dedicara a própria vida ao desempenho daquela função. Não podia evitar. Não podia fugir. Era tanto amor, que aquela dedicação e sacrifício eram realizados com satisfação. Embora aquelas olheiras fundas, aquelas rugas expressivas e aqueles olhos de pouco brilho denunciassem o cansaço e a fadiga, suas atitudes sempre demonstravam firmeza e vontade. Suas mãos, seguras do que faziam, recusavam-se a apresentar qualquer tremor, por menor que fosse. Sabia que aquela estabilidade era o que mantinha tudo ao seu redor em pé, sólido. Sabia que não podia faltar. Falhara muitas vezes, mais até do que gostaria de admitir. Mas faltar, nunca. O que não sabia, era quando. Até quando. Era certo que, em algum momento, aquilo teria um fim. E ela sabia que estaria presente para vê-lo. Mas evitava pensar naquilo. Não por medo, pois a certeza de que um dia viria dava-lhe forças para não temer. Mas porque sua única insegurança era o depois.

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Desceu a escadaria e deparou-se com a porta. Aproximou a mão da maçaneta, mas estacou antes de tocá-la. Tremia feito vara verde, como diria sua avó. O suor frio que brotava em sua fronte fez perceber que ainda não era hora. Ainda não era capaz de confrontar aquilo. Há três meses não saía de casa. Três longos meses. Três intermináveis meses. Três malditos meses. Noventa e sete dias, mais precisamente, contados um a um, quase uma hora de cada vez. Dessas duas mil trezentas e vinte e oito horas, dormira menos de quatrocentas. Trezentas e oitenta e oito, mais precisamente, essas sim, contadas uma de cada vez. E vinte e sete minutos. Era a quinta vez que tentava sair. Naquele dia, apenas. Ao todo, foram novecentas e sessenta e duas tentativas ao longo daquelas treze semanas. Em todas elas, o processo se repetia. Tinha certeza de que aquela seria a definitiva, quando ainda estava no alto da escadaria. No meio, acreditava que seria capaz. No último degrau, rente ao solo, achava que conseguiria. Frente à porta, temia não conseguir. E quando buscava a maçaneta, sabia que voltaria atrás. E assim, baixou a mão e voltou à escadaria. Quem sabe o nonagésimo oitavo dia traria novas forças...

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Acordou atrasado. Olhou o relógio e vociferou algumas expressões pouco educadas. Levantou num salto, ignorou aquela sensação vertiginosa e dirigiu-se ao banheiro. Uma chuveirada rápida e a primeira roupa limpa serviu como vestimenta. Um pão na boca e um chiclete no bolso, pegou uma lata de suco e a chave do carro, levando a gravata em torno do pescoço, à espera do nó. Conferiu o relógio do carro e cosntatou que ainda tinha tempo de não se atrasar. Se o trânsito permitisse. Aliás, se o trânsito todo estivesse daquele jeito, conseguiria chegar cedo, até. Aliás, naquele horário, daquele dia, era de se estranhar aquele trânsito tão livre. Ao ligar o rádio, desatou a rir quando ouviu o locutor celebrar o feriado. E então constatou que um despertador não toca quando não está programado para tal. Pensou no que fazer. Praia não era uma opção, muitos provavelmente já estavam a caminho. Não gostava de shoppings e o campo era muito longe. Resolveu então fazer algo que há muito planejava, mas nunca tinha tempo de fazer. Uma visita que há muitos anos desejava. Dirigiu seu carro até a praça mais próxima. Pegou o celular, e desligou-o. Deixou a gravata no banco do passageiro, desabotoou metade da camisa e subiu as mangas. Pegou aquela toalha esquecida no banco de trás e então saiu do carro. Estendeu-a no gramado e deitou-se sobre ela. E, finalmente, pôs-se a ouvir os próprios pensamentos.

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Quantas vezes já te disse pra fechar a porta do carro com cuidado? Menos do que me mandou arrumar o quarto. Algum dia você vai deixar de ser um adolescente respondão? Algum dia o senhor vai deixar de ser um chato implicante? Quem sabe no dia em que eu deixar de ser seu pai. Ok, temos uma data marcada, então, você deixa de ser chato e eu deixo de ser adolescente. E quando vai deixar de ser respondão? Quando o senhor deixar de ser implicante. Nunca, então... Parece que sim... Estudou pra prova hoje? Não tenho prova hoje. Estudou pra prova hoje? Não tenho prova hoje, já disse. Estudou pra prova hoje? Mas que coisa, como você sabe que tenho prova hoje? Não sei, mas você sempre se entrega na terceira vez que pergunto. Droga! Olha a boca! Desculpe. E então, estudou ou não? Quase... Como, quase? Só faltou uma coisa pra eu estudar pra prova de hoje. O quê? Lembrar de qual matéria é a prova... O QUÊ? Ah pai... Ah pai o escambau! Olha a boca! Não me remeda! Desculpa... Como alguém não lembra de qual disciplina vai fazer prova? Ah, sabe como é, né... Não, não sei, me explica. Ah pai, é complicado, né! O que é complicado? Ah, sei lá... Sei lá, o quê? Ah, muita coisa pra pensar, né... Como que alguém que só estuda tem muita coisa pra pensar? Ah, bom, tem a fome na África, a seca no Nordeste, a neve na calota solar. Polar. Ou isso, muita coisa pra pensar, sabe como é, né... Não, não sei, e às vezes acho melhor nem saber. Credo pai!... E o que vai fazer com a prova hoje? Ah, sei lá... Sei lá, como? Pô pai, quanta pergunta! E nenhuma resposta, né?! Relaxa, pai, eu dou um jeito. Você sempre dá um jeito, e isso me preocupa... Qualé, o senhor nunca foi chamado na escola! Pois é, mas não se se é porque você é um bom exemplo, ou um bom mentiroso... Pô pai, não confia na educação que me deu? Na educação eu confio, só não confio no uso que você faz dela. Faz sentido... Pois é. Pára aqui, vou descer na esquina. Por quê? Preciso de um chiclete. Chiclete? Sim, chiclete. Sei... Qualé, juízo eu tenho, viu! Então vê se usa! Pô pai... Pronto, tá entregue. Valeu, até mais tarde. Vai com Deus, te amo. Também, fui! Boa prova. Que prova? Não força... Mal aí, beijo e tchau!

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Eu usei as palavras que pude usar. Eu disse o que sinto e o que penso. Como sempre fiz. Só não disse tudo. Como sempre... Há coisas que guardo só pra mim, não sei bem se por egoísmo ou por medo ou por ambos. Mesmo que, às vezes, fosse melhor compartilhá-las. Mas eu disse o que pude dizer. E olhei como pude olhar. E toquei como pude tocar. Nem o toque, nem o olhar, nem o dito foram como quis, apenas como pude. Não sem alguma dificuldade. Meu coração se debatia e contorcia num ritmo desenfreado e fora do normal. O tremor começava na espinha e percorria cada célula até as extremidades mais extremas do meu corpo. Confesso que foi uma espontaneidade forçada, a princípio, mas aos poucos evoluiu para uma naturalidade espontânea, ainda que um pouco doída. Uma dorzinha surda e persistente, leve porém incômoda apenas por ser dor. Por causa daquela falta de calor. Não chegava a ser frieza, apenas a ausência daquele calor confortável e acolhedor que parece ter deixado de existir. Uma presença levemente ausente, como encarar alguém através de uma cerca de arame farpado. Está ali, mas é inatingível. E ainda que o sol ultrapasse os trinta e muitos graus, só o que senti foi a falta de calor. Do nosso calor. Do meu calor. Pois, devo confessar, eu mesmo não fui eu mesmo. Não completamente. Não como quis. Apenas em partes. Apenas como pude. E é isso que serei. E é isso que farei. O que puder. Tudo, mas apenas como puder. Com tudo que eu tiver disponível de mim mesmo. Um tudo que eu mesmo já não sei o quê ou quanto é. Menos ainda quanto será. Mas, pouco a pouco, eu reencontro algo desse tudo, até que tudo volte a ser tudo de novo, completo. Mas, por enquanto, infelizmente, serei apenas o que puder. Mas serei. E estarei. E farei. Sempre. Pois, afinal, tudo isso sou eu, ainda que eu não seja tudo isso...

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Me desculpe, não foi de propósito. Eu sei, não estou te julgando por isso. Mas mesmo assim, sinto muito. Eu também sinto. Não era pra ser assim... Talvez fosse, quem sabe?... Eu sei, não era pra ser assim. Queria poder acreditar nisso. Eu também, por isso repito pra mim mesmo todo dia. E funciona? Até agora, não... Então, por que insiste nisso? Porque eu quero acreditar nisso. Por quê? Porque a pequena ilusão de que poderia ter dado certo é muito menos dolorosa que a certeza de que estava fadado ao fim. Mas eu nunca disse isso. Ninguém disse, mas mesmo assim não quero sequer considerar essa possibilidade. Mas não deixa de ser uma possibilidade... Deixa sim. Você e seu otimismo... Eu e meu realismo, você diz. Que raio de realismo é esse? O realismo de que as coisas são feitas pra dar certo, e não pra falhar. Então por que dá errado? Porque somos humanos e estamos condicionados ao erro. Então, de qualquer forma, ia fracassar. Talvez, mas se não sucumbíssemos ao erro, teria dado certo. E como não sucumbir ao erro? Se eu soubesse, não estaríamos tendo essa conversa. Faz sentido... Pois é... E agora? Não sei, e agora? Não sei... Pois é, então me vou. Já? Já, preciso ir. Por quê? Não sei, mas preciso... E vai pra onde? Não sei, mas vou... Hum... É, desculpe ser tão vago, mas é essa a verdade, eu não sei... E você volta? Eu estarei aqui. Mas você disse que estava indo. E estou, mas estarei aqui. Até quando? Não sei... Hum... Pois é, me vou então... Tá... Beijo e fica com Deus. Te amo. Também... Tchau...

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Confesso que, por um momento, tive medo de escrever. Me disseram que tudo que eu escrevesse seria interpretado segundo os olhos do leitor. E eu, apesar de viver a minha vida do meu jeito, me preocupo um bocado com a forma como me interpretam. Tenho medo de ser mal interpretado. E, pra ser muito sincero, às vezes, muitas delas, na verdade, eu mesmo não entendo exatamente o que está ali. Vejo várias interpretações pra uma mesma imagem, ou vejo nada. Mas também me pediram que eu continuasse a escrever como sempre escrevi, do meu jeitinho. Acho que isso quer dizer que devo viver minha vida sem medo de como irão me interpretar. Mas é difícil, muito difícil... Confesso que quase me calei, quase não escrevi. Mas, num impulso que talvez devesse ser refreado, eu escrevi. Aliás, vários impulsos eu deveria ter refreado, mas esse excesso de autenticidade e espontaneidade e naturalidade sempre me quebra as pernas. E, ainda que, depois, eu me arrependa e fantasie inúmeras formas de não dizer aquilo que já havia sido dito, bem lá no fundo, eu sei que isso é inevitável, pois sou um péssimo mentiroso. E esconder coisas também não é nada saudável. Elas surgem, em algum momento. Elas sempre surgem. Por isso, de alguma forma, gosto mais da verdade. Ainda que, às vezes, ela seja um bocado dolorosa, pois ela me deixa mais livre, pra que eu possa continuar a ser eu mesmo, pra que não precise planejar um fingimento e possa preservar esse meu jeito meio eu de ser. Ainda que esse jeito seja meio torto, um pouco mais do que eu gostaria...

O Espelho

Espelhos. Era esse seu fascínio. Desde que se entendia por gente. Sempre os admirava, ainda que à distância. Via seu reflexo naquelas lâminas de vidro e surpreendia-se com a mágica que se ocultava por detrás delas. Todos seus movimentos, copiados porém invertidos com uma perfeição incrível. Incompreensível, a seu ver. Ainda em tenra idade, detinha-se por horas a fio a observar a própria imagem refletida, a interagir consigo mesmo com gestos, saltos, danças e tudo mais que pudesse fazer. No começo, incomodava-se com o silêncio do seu eu invertido, mas com o tempo acostumou-se, e passou até a gostar. Aquela companhia silenciosa permitia que se concentrasse nos próprios pensamentos, que viajasse para dentro das próprias idéias e sentimentos e aprendesse um pouco mais sobre si mesmo. Surpreendentemente, não era tudo que o fascinava. Vidros e pratarias e qualquer outra coisa que refletisse sua imagem eram apenas um reflexo qualquer, apenas uma cópia sem vida. Mas os espelhos não. Havia algo de diferente neles. Havia algo de... mágico. De místico. De fantástico. Tanto que nunca tivera coragem de tocá-los.

Não sabia dizer o porquê, mas nunca tivera coragem de tocá-los. Vontade tinha. Muita vontade. Por vezes, aproximou sua mão até quase tocar, sentindo como se sua própria aura refletisse naquela camada vítrea e tocasse sua mão de volta. Em outros momentos, tinha a impressão de que aquilo que sensibilizava suas terminações nervosas provinha do próprio espelho, como se viesse de algo além daquela barreira. Pesquisou. E como pesquisou! Mas nada parecia esclarecer o suficiente. A física era muito fria, insensível. Conseguia compreender aquelas coisas complicadas sobre luz e reflexo e refração e tudo mais que tentavam explicar, e era capaz de visualizar tais conceitos em qualquer lugar onde visse seu reflexo. Exceto nos espelhos. Havia mais neles, algo com uma certa aura mística, envolvente, diferente. Mas, ao mesmo tempo, as explicações mitológicas também era questionáveis. Fantasiosas por demais, tornavam-se inacreditáveis. E insuficientes. Sabia que a verdade ia muito além do que se via, do que se lia, do que as pessoas julgavam saber.

Até o dia em que permitiu que a curiosidade e a sede de conhecer sobrepujassem o medo. E enfim aproximou-se do espelho. Levou a mão tão próxima quanto pôde, sem tocá-lo, ainda. Outra vez sentia aquela energia pulsada que tocava sua mão, sem saber se era a própria aura a refletir-se ou se era uma emanação sabe-se lá de onde. E então, lentamente, aproximou-se mais, até tocá-lo. Uma superfície sem temperatura, fria porém quente. Sólida como o chão que o sustentava, mas que parecia tão etérea quanto o ar que respirava. Era um toque que, ao mesmo tempo que não oferecia qualquer resistência, parecia impenetrável. Mas, tão lentamente quanto se aproximou, continuou a deslocar sua mão e, novamente surpreendemente, ela atravessou o espelho. Olhava o próprio antebraço, meio dentro, meio fora, como se fagocitado pelo próprio reflexo. Sentia o contato da lâmina de vidro refletora ao redor da pele, quase como se fosse água, mas aquela superfície não tremulava, não se perturbava com aquele contato. Do outro lado, sua mão sentia... nada. Não havia vento, nem calor, nem frio, nem nada. Trouxe-a de volta, e ela era tão mão quanto antes. E o espelho, outra vez, se comportou como se nada daquilo fosse com ele. Nem uma única ondulação em sua superfície. E assim, num impulso de curiosidade e irracionalidade, projetou-se num passo adiante, em direção ao espelho, e estacou após duas passadas, ainda de olhos fechados, sem saber o que acontecera.

Abriu-os lentamente e viu-se num plano diferente. Olhou para trás e viu-se refletido numa pequena parede sem limites definidos. Via-se de costas, com o pescoço voltado para trás a encarar os próprios olhos. Um perfeito reflexo. Ao fundo deste reflexo, via também o mesmo que vira diante de si, naquele plano diferente. Virou-se novamente para frente e observou novamente o que ali se encontrava. Nada. Ou tudo, não sabia definir. Aquela paisagem, que parecia tão vazia, ao mesmo tempo se mostrava tão plena que parecia não precisar de mais nada para existir. Ao alcance de seu braço, e até mesmo de sua vista, tudo parecia vazio. Tão vazio que o nada tomava forma e preenchia a si mesmo. Mas, além do que via e tocava, era como se soubesse, como se sentisse que havia mais. Divisava contornos, formas e paisagens que pareciam tão longínquas que quase podia tocá-las. E meio assim sem motivo, olhou para trás novamente.

E lá estava seu reflexo, devolvendo seu olhar. E então, virou-se de frente a ele. E, como que por mágica ou sabe-se lá o quê, seu reflexo desapareceu tão logo se pôs frente a frente com ele. Assustou-se e olhou para trás novamente e, para sua surpresa, encontrou aqueles olhos refletidos a lhe devolverem o olhar com a cabeça virada sobre os ombros. Estava a menos de um passo de distância. Sentia que, se desse uma passada para trás, atravessaria aquela parece e se encontraria novamente diante do espelho que confrontara anteriormente. Mas... não queria. Não era o que desejava. Gostava daquela vida, mas as possibilidades que agora se descortinavam à sua frente pareciam chamar seu nome. Sabia que aquilo que tivera antes não seria satisfatório o suficiente para que aceitasse retomar aquela vida de antes. Ainda encarando os próprios olhos no reflexo, observou o vazio que circundava ambos. Aquele vazio tão pleno que era capaz de satisfazer só por estar presente. Olhou adiante outra vez e admirou aquela imensidão de nada repleta de tudo que poderia viver. Encheu os pulmões e expirou lentamente enquanto dava o primeiro passo. Às suas costas, nem mesmo precisou olhar para saber que seu reflexo permanecia à mesma distância. Ou quase. Estranhamente, era como se sentisse que aquela parede ficara menos de um milímetro mais longe, mas ainda assim se afastara. Deu outros passos até senti-la quase dois milímetros mais distante. E então compreendeu que cada passo dado naquele mundo só o levaria à frente. Em direção aos mundos que sabia existir, ainda que não os pudesse ver. E assim, olhando para trás uma última vez com olhos de despedida, começou a caminhar, sentindo aquele mundo que um dia fora seu pouco a pouco mais distante. Não havia mais como voltar. O único caminho era aquele que seu nariz lhe apontava.

Lama

Foi quando começou a chover. Ele estava ali sozinho, a observar aquela paisagem vazia. Recebeu aquela chuva como uma benção. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, recebendo aquela água celeste como um bálsamo. E ali ficou, sabe-se lá por quanto tempo, a banhar-se nas lágrimas da natureza e pedir-lhe que lavassem as suas. Voltou novamente a olhar para aquela paisagem desoladora e então viu. Nada. Absolutamente, nada. Apenas um deserto descampado com pequenos tufos de uma relva rasteira, dura, de um verde opaco desvitalizado e odor desagradável. Ao longe a chuva compunha uma cortina cinzenta, densa, que quase parecia impenetrável, consoante com aquela paisagem quasimorta que encarava. Desde o começo soubera que aquela era uma possibilidade. Indesejada. Esquecida. Menosprezada. Mas não ignorada. Mesmo assim, arriscou-se e mergulhou. E assim desembocou naquele mundo, ainda sem saber exatamente onde era. Ao seu redor, aquela paisagem o paralisava. Temia. E tremia. Não conseguia distinguir se era frio ou qualquer outra etiologia. Aquela chuva de grossas e pesadas e molhadas e geladas gotas que lhe esfriavam a carne, enregelando-o até os ossos, mas parecia aquecer-lhe a alma, de alguma forma. Ao longe, não se sabe a que distância ou em que lugar ou por que razão, viam-se tênues feixes de luz. Era o sol que rasgava e penetrava aquela densa cortina plúmbea. Não iluminava nada em especial, apenas aquele mesmo solo árido revestido por escassas ilhas de lâminas gramíneas. Mas, por algum motivo, sentia vontade de andar em direção àqueles holofotes celestiais. Ao seu redor, aquelas mesmas gotas que lhe esfriavam o corpo e aqueciam o coração tocavam o solo num baque surdo, ritmado, formando pequenas crateras de lama que imediatamente se dissipavam num raso oceano que começava a se formar sob seus pés. Ao redor dos seus pés. Sobre seus pés. Pouco a pouco aquela lama sólida e lamacenta ganhava vantagem sobre ele, enquanto distraidamente admirava aquela paisagem. Foi quando tentou sair que notou. Aquela pegajosa camada retinha seus pés de tal forma que a força que empenhou naquela frágil vontade cedeu à resistência do lodo. Não se moveu, afinal. Encarou os próprios pés e suspirou. E desanimou. Olhou novamente à frente, e de repente aquelas ilhas de sol lhe pareceram tão distantes, tão inatingíveis... Cada célula do seu corpo parecia pedir-lhe que ali ficasse. Subitamente, teve vontade de deitar-se e deixar-se engolir por tudo aquilo que via. Pareceu-lhe confortável a idéia de permitir que aquela lama e aquela chuva e aquela paisagem o fagocitassem e junto com ele encobrissem tudo que o levara até ali. E cada organela de cada célula de cada órgão de cada sistema de seu corpo parecia desejar o mesmo. O lamaçal já lhe cobria os tornozelos e era com olhos opacos e sem brilho que observada as próprias pernas a se debaterem debilmente, qual um animal moribundo e agonizante num delírio de sobrevivência. E cada novo esforço, se é que se podia denominá-los como tal, parecia mais desprovido de vontade, como se aquele chão sedento de vida drenasse cada quântum de energia vital que ainda lhe restava. E embora seu corpo implorasse um repouso, suplicando que parasse ali mesmo, entregando-se à inércia à inépcia ao desalento e enfim declarasse o fim, algo ainda o mantinha em pé. Aquela estranha chuva que lhe esfriava até os ossos mas parecia aquecer algo mais íntimo, mais profundo. Já não sabia se chorava ou se era o céu a lhe lavar as dores e compor as lágrimas, que já não tinham aquele sabor salobro. Mas já não doía tanto assim. O frio anestesiara-lhe a carne. O calor aquecera-lhe a alma. E ainda que sentisse brotar dentro de si pequenos riachos de pranto, ainda que toda sua matéria lhe pedisse pouso, ainda que aquela paisagem lhe inspirasse o fim, continuava em pé, rijo, sólido. E aquela perna que então se debatia, entregue ao desalento, não cedeu à resistência e lenta porém gradualmente galgou altura até projetar-se fora daquela prisão lamacenta, para em seguida ganhar distância à frente e por fim mergulhar novamente naquele barro incapacitante. E apoiando-se no impulso de sobrevivência daquela primeira perna, a segunda também se elevou e projetou-se um pouco mais adiante. E assim foi, pé ante pé. Vagarosamente. Penosamente. Insistentemente. Não sabia para onde ia. Mas, mesmo assim, ia.

E então ele afastou a cadeira, levantou-se e foi até a cama. Sobre ela, tocava um despertador, com uma melodia repetida e já ignorada há tanto tempo. Voltou e sentou-se à frente do computador novamente. Uma dor no peito, forte. Um começo de pneumonia, talvez, considerando aquela tosse estranha. Ou um começo de fim, não sabia dizer. Seus braços não pareciam seus e sua mente não parecia sua. O mundo todo, de repente, lhe era estranho, como se nunca pertencera àquele lugar. Não haviam cores e os perfumes cheiravam a poeira. Os sabores desapareceram. Lá dentro, uma única chama, um sentimento. Um restinho de cor. Dourado. Parecia ser a luz que mantinha seu coração batendo, um coração apertado, um coração que começava a esfriar. No relógio faltavam cinco minutos, sabe-se lá pra que hora em especial. Já não importava mais. Já não havia especial. Até mesmo os dedos que batiam o teclado pareciam pesados, como se feitos de puro chumbo, batiam maquinalmente seguindo o ritmo de uma mente em arritmia. Mas já não importava mais. Essa era a vida. E ela deveria seguir, sabe-se lá como.

"Eu sou uma aberração", leu ele. E sorriu, um sorriso com um leve toque de ironia. "E sou mesmo", pensou, com aquela dor estranha no peito. Incrível como ainda se reconhecia em todas aquelas palavras, fossem quais fossem. Incrível como ainda se via naqueles olhos, como ainda respirava aquele perfume. Bastava fechar os olhos e lá vinha aquele aroma de flores e frutas. Bastava reabri-los e lá estavam aqueles dois cômodos escuros e frios. Tão pequenos outrora, tão imensamente gigantescos e insuportáveis agora. O despertador toca outra vez, é a hora que se aproxima. Que hora, não se sabe dizer. O pensamento não pensa mais, é o corpo que assume o comando, deixando uma espécie de piloto automático conduzir-lhe a vida. Por fora, poucos vêem. "É o cansaço", diz ele, convincentemente. Um sorriso leve nos lábios, vazio, vestido à força naquele corpo que agora vive por conta própria, sem um comando. Um corpo que já não parece seu, uma vontade que já não lhe pertence mais. De olhos fechados, só o que sente são imaginações. Um cabelo a roçar-lhe o peito, mãos a acariciarem-lhe os ombros, lábios que lhe tocam o pescoço, o som cristalino de uma gargalhada, o perfume envolvente de um corpo.

Mas novembro vem, lavando os últimos maus espíritos do inverno. E ainda que ele se sinta como o próprio mau espírito, pede pra ser lavado. Pede pra ser renovado. Pede por surpresas boas, sejam elas quais forem. Sabe que virão, ainda que não veja perspectiva agora. Sabe que o mundo continua a girar. O despertador tocará novamente em alguns minutos, é a hora que se aproxima. Pouco a pouco, um dia ele tomará consciência de que a hora que chega é a hora de viver. De retomar a vida. Enquanto houver vida, há esperança, dizem alguns. Enquanto houver esperança, há aquela chama dourada, aquele último resquício de calor, aquela última vontade de fazer, aquele restinho de cor. Que venha novembro, lavando os maus espíritos e transformando-os em mensageiros da boa nova. Que venha o tempo que vier, trazendo o que trouxer. Porque, ainda que lá dentro, em ruínas, um viajante perdido procure o caminho de volta, lá fora ainda há um sorriso. Meio automático, meio intencional. Necessário. Uma promessa a ser cumprida, um último compromisso assumido. E aqueles dedos, pesados como chumbo, pouco a pouco começam a se movimentar com mais leveza, implorando, pedindo a qualquer entidade suprema existente, que se ainda há alguma esperança de cura nessas mãos, que se manifeste trazendo boas palavras e toques delicados.

Anjo

E eis que ela surgiu, em um vestido azul anil, longo e esvoaçante. Aquele caminhar volitante, leve porém resoluto, os quadris se movendo de um modo firme porém delicado. Seus olhos cor de madeira traziam uma expressão serena, com a profundidade de um oceano e a beleza de um entardecer. E quando se movimentava, era como se o ar desse passagem a cada graciosidade que seu corpo produzia. E então ele piscou e esfregou os olhos, como se quisesse ter certeza de estar acordado. E quando os abriu novamente, aquele breu fez com que tateasse ao redor até tocar o interruptor, e tudo que viu foi um teto branco levemente amarelado, sugerindo que despertara. E antes que pudesse duvidar, o canto do despertador trouxe-lhe a certeza do que era real e do que fora onírico. Levantou-se, banhou-se, vestiu-se, alimentou-se, encaminhou-se, trabalhou-se, alimentou-se novamente, trabalhou-se mais, voltou-se, banhou-se outra vez, vestiu-se de novo e deitou-se. Um dia comum. Mais um dia comum. Mas com aquela constância no pensamento, aquela imagem de sonho que fixara-se em sua mente e movimentara sua imaginação. E, a muito custo, finalmente adormeceu. E então ele a viu.

Estava sentada diante dele, sobre uma pedra. Olhou ao redor e viu-se numa clareira, rodeada de árvores frondosas e salpicada de pequenas flores coloridas que interagiam com a veste azul anil que ela usava. Ele a encarou, com medo de piscar. E observaram-se mutuamente, sabe-se lá por quanto tempo. E quando se tornou inevitável, ele piscou, e reabriu os olhos, temeroso. E eis que ela ainda estava lá. E então ele sentou, com um leve sorriso de alívio. E ela retribuiu o sorriso. E nesse momento, o sol brilhou mais forte, as flores coloriram mais intensamente, os pássaros cantaram com mais vigor, o vento soprou com mais carinho. Pelo menos, foi assim que ele sentiu aquele sorriso. “Quem é você?” perguntou ele, com uma coragem vinda sabe-se lá de onde. “Ninguém importante” respondeu ela. “Como, ninguém importante? Seus olhos brilham e o seu sorriso ilumina. Sua presença parece ser suficiente para que todas as cores ganhem vida e para que o mundo se anime! Como é possível que seja ninguém importante?! Diga-me seu nome, por favor!” E então ela perguntou o que ele achava do bosque. Se gostava das flores. Se a luminosidade o agradava. E o convidou a um passeio. E ele foi sem saber seu nome, e sem se importar com isso. Andaram e riram e conversaram e desfrutaram até chegarem à beira do lago, onde ela então se despediu. “Vou vê-la novamente?” questionou. “Quem sabe...” respondeu. E então ele viu aquele rosto angélico se aproximando e fechou os olhos para recebê-lo. Sentiu o doce contato daqueles lábios a tocarem-lhe a ponta do nariz, e abruiu os olhos a tempo de ver o sol nascendo através de sua janela. E assim, com uma certa dificuldade, levantou-se e seguiu-se em sua rotina, repetindo cada passo daquela noite em sua memória. E naquela noite, o sono veio com a fluidez de um córrego que desce a montanha. Ainda de olhos fechados, sentiu aquele calor agradável a banhar-lhe o corpo. Sorriu, e abriu os olhos, e lá estava ela com aquele sorriso estelar.

E assim se seguiram os dias. Ao nascer do sol, despertava e seguia sua rotina usual. Ao deitar-se, despertava do outro lado e vivia seu sonho. Anjo, era como ele a chamava. Não lhe importava o nome, desde que ela estivesse lá. Até a noite em que ela não esteve. Naquela noite, sonhou com aviões, aventuras, animais e muitas outras fantasias, mas ela não veio. E na noite seguinte também. E na outra. Na quarta noite, lá estava ela, aquele vestido azul anil e aquele sorriso ensolarado. Mas, por um momento, aquela visão não foi suficiente para iluminá-lo. Numa quase carranca, perguntou “Onde esteve? Por que não veio, por que se ausentou todo esse tempo?” Seu sorriso desmanchou-se numa serena seriedade enquanto respondia “Porque não pude. Ou porque não quis. Não importa, são motivos meus. Não sou propriedade sua, sou livre, vou e volto como bem entender. E se hoje estou aqui, é porque quero estar aqui.” E então ele fechou seu rosto em dúvida ao perguntar “Como? Isso é um sonho, um sonho meu. De que forma você pode ir e voltar como quiser se sou eu que estou a sonhar?” Então, esboçando um sorriso compreensivo como quem fala a uma criança, disse “Um sonho? Seu sonho? Ainda não entendeu, não é?...” “Mas se isso não é um sonho, então o que é?...” perguntou novamente. E antes que terminasse a frase, sentiu sua mão a tocar-lhe o rosto, um toque quente, suave, real! Pôs sua mão sobre a dela e sentiu-a ainda mais delicada, ainda mais real... E então, num impulso de vida e desejo, levou aquela mão àquele rosto semidivino e envolveu-a pela cintura e trouxe-a para aquele tão esperado beijo. E pouco a pouco sentiu aquele contato esvair-se até ser despertado pelo sol que aquecia seus pés. Sentindo ainda a boca quente e seu espírito em êxtase, trouxe a mão ao rosto e sentiu aquele perfume de flores e frutas e então compreendeu.

E então passou outra noite a sonhar coisas irreais. E durante o dia, revivia em sua memória cada momento experimentado naquele outro mundo. E outra noite vazia se seguiu àquela. E mais outra. E outras mais. Até que novamente deitou-se e sentiu aquele calor familiar. E respirou aquele perfume esperado. “Pensei que não a veria mais” disse, de olhos ainda fechados. “E não veria”, disse ela, “mas foi mais forte que eu...”, enquanto acariciava-lhe os cabelos. E quando enfim abriu os olhos, viu aquele queixo desenhado pelos anjos e aqueles olhos de madeira a observá-los de cima, com uma ternura que lhe era desconhecida até então. Fechou novamente os olhos, a desfrutar, enquanto indagava “Quando irei vê-la de verdade?” “Mas isso, aqui, agora, é verdade!” respondeu ela. “Sim, eu sei, mas... bem... quero dizer, quando irei vê-la acordado?” replicou ele. “Mas você está acordado”, treplicou ela, e antes que ele formulasse nova frase, continuou “o que ainda não entendeu, ou não aceitou, é que algo em você deve adormecer para que outra parte desperte. De lá para cá, de cá para lá, não importa. Algo adormece para que outro desperte.” E ele meditou aquelas palavras no silêncio daquele afago. “Mas... onde é cá?” perguntou enfim. “Também não sei”, respondeu ela, “só sei que cá é onde posso encontrá-lo, como se fosse um mundo só nosso...” E assim viveram novos dias, naquele sentimento novo e crescente e diferente e... fantástico! Até que outro despertar aconteceu...

Ele abriu os olhos e sentiu um calor diferente. Familiar, mais familiar que outros calores. Olhou ao seu redor e parecia reconhecer aquela paisagem. Parecia... seu mundo. As cores eram mais vivas e as sensações mais intensas. As vibrações mais radiantes e os perfumes mais marcantes. “Ah, sim, agora faz sentido...” ouviu, no som cristalino daquela voz tão desejada. Virou-se e viu-a, em um vestido azul ciano mais leve e mais curto, fresco como se espera que seja naquele mundo de calor. “Mas... o que você está fazendo aqui?” perguntou, num misto de surpresa e alegria. “Esse lugar, esse espaço, esse mundo, onde estamos?” foi a vez dela perguntar. “Aqui é onde vivo, onde existo. Aqui é onde aconteço. Parece diferente, de alguma forma que não consigo explicar. Como se fosse... mais real que a minha realidade, talvez... Mas... como você chegou até aqui?” “Não sei. Assim como não sei como criamos aquele mundo só nosso. Talvez sua vontade de me trazer até aqui. Talvez minha vontade de estar ao seu lado. Talvez todos os fatores juntos. Não sei. Mas sei que estou aqui e gostaria de aproveitar ao máximo cada momento...!” E sorriu aquele sorriso capaz de iluminar uma vida. E ele sorriu de volta aquele sorriso digno de quem recebe uma vida. E levou-a a conhecer seu mundo. Mostrou-lhe seus motivos e suas alegrias, suas tristezas e seus pensamentos, seus sonhos e suas verdades. E ao término daquele passeio, perguntou-lhe “E quando conhecerei seu mundo?...” “Não sei”, respondeu-lhe, francamente, “honestamente, não sei. Um dia, talvez. Nunca, quem sabe. Não sei se estou pronta para recebê-lo lá. Não sei se algum dia estarei...” E apesar daquela resposta incerta, gostou daquela nova possibilidade. E então, suas noites passaram a alternar-se entre um mundo e outro mundo. E algumas noites vazias também, que passou a chamar de noites essenciais, pois renovavam-lhe a saudade e a vontade e o desejo e a certeza. E assim seguiu, sabe-se lá por quanto tempo, uma medida que não existia naquele mundo onde se encontravam. Até o dia em que despertou, surpreso novamente. Olhou ao redor e viu um mundo de cores extravagantes e perfumes diferentes, levemente embaçado e nebuloso. Tinha dificuldade em distinguir formas, esfregava os olhos e caminhava com passos cambaleantes, até que viu. Até que a viu. Vestida em um macacão azul celeste sobre uma camiseta azul índigo, confortável embora confusa, parecia não entender. E então ele sorriu, pela primeira vez um sorriso capaz de iluminar um dia. E então tudo ficou claro, enquanto ele caminhava resoluto em direção à dona daquele universo que até então lhe era desconhecido...

No dia em que os anjos desceram à terra

Aconteceu no dia em que os anjos desceram à terra. Eu me lembro como se fosse ontem. Eram apenas algumas centenas deles. Poucos, se comparados aos que existem hoje. Ainda estavam no começo de sua criação e vinham conhecer o mundo onde atuariam. Tudo ainda era novo, um tanto quanto rústico, pura virgindade de um solo que ainda seria cultivado. E foi ali que aquela legião angélica aportou, em seus deslumbrantes mantos esvoaçantes e suas alvas asas majestosas. Seus olhos brilhavam, aguçados pela curiosidade daquilo que os esperava, mas não possuíam auréolas, ainda, visto que não havia motivos para merecê-las. E foi assim que tiveram o primeiro contato.

Era uma raça rústica, tão virgem quanto o chão que pisava. Comunicavam-se aos trancos e barrancos, com grunhidos guturais quase incompreensíveis e uma linguagem corporal baseada na violência. Eram poucos, menos ainda que os anjos, desprovidos de asas e graciosidade. Os alados riam-se da infância daquela raça ignorante, compreendendo suas intenções ainda primitivas e meramente sobrevivenciais. Até que o primeiro deles, tomando coragem, decidiu-se por se aproximar de um dos outros. E observou que ele parecia mudar ante sua aproximação. Serenava-se, como se pudesse senti-lo, apesar de não vê-lo. E, inspirado por aquela serenidade, soprou um carinho e viu aquela sobrevivência demonstrar um toque de convivência quando aquela linguagem violenta delicadamente deu lugar a um toque humano. Inesperadamente, ou talvez nem tão inesperado assim, a reação de outro dos outros foi um choque explosivo que afastou o primeiro e repeliu a entidade angélica, dando lugar novamente à natureza daqueles primitivos. Rápida e instintivamente, um segundo anjo concentrou-se no segundo quasihumano que reagiu com a serenidade do primeiro, interrompendo um gesto quase fatal, como se enfim compreendese o quão vil seria. E a legião angélica então assombrou-se com seu próprio poder.

E um a um, experimentaram aquela atitude. Por aproximação ou por pensamento, afinaram-se com aqueles irmãos ignorantes. E eles, também novos no universo, começaram a compreender e a enxergar a complexidade daquela raça ainda em evolução. Passaram a enxergar vontades e aspirações que não viam como meros observadores. E aos poucos, aqui e ali, alinharam-se com esse desejo ou com aquela inspiração, e um a um, sintonizaram-se com seus protegidos. Exceto aquele primeiro anjo, que junto a um pequeno grupo, afinava-se e compartilhava de todas aquelas aspirações. Desejavam todos os desejos e inspiravam-se com todas as vontades. E então, quando os anjos enfim compreenderam o intuito de sua criação, prepararam-se para retornar e se reunir com o criador para que pudessem caminhar com seu trabalho de cocriadores. Todos, exceto aquele primeiro anjo e aquele pequeno grupo. Ansiavam o trabalho, mas desejavam a proximidade. Sem saber o que fazer, ajoelharam-se e confiaram na providência daquele que os havia enviado.

E assim, enquanto se encaminhava para a presença do criador, Miguel, o mais famoso dos anjos, voltou-se para observar seus pequenos irmãos uma última vez, e o que viu foi aquela pequena leigão, toda composta de anjos mulheres, ajoelhada, confiando. Aos poucos, suas asas iam-se desmanchando, pena a pena, e seus corpos pareciam menos radiantes e mais densos. E aquela raça que ainda engatinhava começava a tomar consciência daquelas presenças que se materializavam bem à sua frente. E assim nasceram as primeiras mulheres humanas, cocriadoras de origem angelical prontas a suprimir o quasi que essa raça recém-nascida levava. E, embora aquela legião houvesse renunciado a toda a leveza que possuía, Miguel não temia, pois o brilho nos olhos e o amor no toque revelavam que a humanidade jamais poderia apagar a angelitude daquelas sublimes entidades.

Libertação

"Pensa no inferno" foi a frase dita antes do disparo. E então ouviu-se aquele som de pólvora explodindo no cartucho de uma arma de fogo.

Tudo começara muitos anos antes. Tantos que nem dava mais para contar. Uma história que se confundia com a própria vida daqueles dois personagens. A opressão e a submissão, porque toda passividade precisa de uma atividade. De um lado, aquele que recebia ordens, realizava desejos, acatava imposições e nunca se queixava. De outro, aquele que ordenava, e só. Desde o começo fora assim, até que a submissão se cansou de submeter-se quando passou a observar o mundo. Via cores e sabores, via formas e conteúdos. E quando tentou alcançá-los, percebeu as grades que a restringiam. Foi então que passou a observar o entorno de si e percebeu o que construíra: um mundo limitado, engaiolado, que, de repente, tornou-se intensamente sufocante. E foi por isso que tentou conversar.

Mas não soube quais palavras utilizar, visto que nunca precisara delas. Percebeu que sequer conhecia o som da própria voz. E, quando tentou pensar no que gostaria de dizer, notou que não sabia o que gostaria, quiçá o que dizer! E implorava com os olhos, mas a outra personagem não os via. Gemia súplicas que, quando ouvidas, eram rechaçadas com grunhidos agressivos e opressores. E, assim, pouco a pouco, minguou. Qual uma estrela que perde o brilho e pouco a pouco se retrai. E, qual uma estrela retraída, que armazena energia até que se torna incapaz de contê-la, explodiu como se fosse uma supernova. E foi então que aconteceu.

Naquele dia, tudo parecia diferente. O café parecia mais doce, percebeu aquele que oprimia. "Que café melado!" reclamou. "Eu gosto assim", ouviu, surpreso, ao perceber de onde vinha a voz. Achou por bem ignorar e seguiu seu caminho, deixando pelo caminho uma xícara meio vazia de café. Não sabia explicar se era a falta do estimulante matinal ou aquela voz surpreendente que afetara sua capacidade, mas o fato era que aquela manhã estava diferente. O trabalho tinha outro ritmo, o ar tinha outro odor e sentia-se a si mesma como uma pessoa diferente. E com essa informação ainda em processamento, dirigiu-se para o almoço em casa. Uma nova surpresa quando encontrou a outra sentada à mesa, já se alimentando. "E o meu prato?" perguntou. E um dedo de boca cheia apontou para a louça vazia que jazia sobre o outro extremo da mesa. "E a comida?" tornou a perguntar. E o mesmo dedo apontou para o fogão. "Não vai me servir?" oprimiu. Silêncio. E somente quando o conteúdo daquela boca foi deglutido, pôde ouvir um "Não" bruscamente interrompido por outra porção de alimento. Estupefato, sem saber o que fazer ou falar, dirigiu-se às panelas e inspecionou o conteúdo. "Sabe que não gosto disso", reclamou. Silêncio. Quis oprimir, quis agredir, mas sua boca abriu-se e fechou-se incapaz de articular uma resposta. Era como se aquele ar denso e pesado estivesse limitando-o. Sentia-se... oprimido. "Vou almoçar na rua", desafiou, e viu-se obrigada a cumprir quando só obteve silêncio como resposta. E aquela tarde transcorreu ainda mais estranha. Não sabia como agir ou reagir. O mundo parecia desafiá-lo e tudo parecia desconexo. E, enquanto voltava para casa ao término daquele dia que parecia combinado para confundi-lo, tentando reorganizar idéias que o deixavam cada vez mais confusa, a única coisa que conseguia pensar era que aquilo precisava acabar naquele mesmo dia! E acabaria.

Abriu a porta e entrou, resoluto, punhos cerrados e respiração bufante numa postura ameaçadora. E a última coisa que sentiu foi uma dor intensa na nuca. Despertou com a cabeça pendendo sobre o peito. Gemeu e tentou amaldiçoar, mas sua boca amordaçada não proferiu aquelas palavras. Quis se mexer, mas seus movimentos foram limitados por cordas em seus punhos e cotovelos e ombros e tornozelos e joelhos e quadris. Olhou em volta, já desesperado, e reconheceu o terraço do prédio onde vivia, parcamente iluminado pelas estrelas. "É ruim, não é?" ouviu, naquela voz que ainda lhe soava estranha, mas que já era capaz de reconhecer o dono. "As amarras, a mordaça, a postura imposta por outra pessoa. A incerteza e a insegurança de ter de obedecer e confiar naquele que supostamente possui uma força maior que a sua." E então sentiu o toque frio e arredondado de uma extremidade metálica. E paralisou-se, numa demonstração extrema do mais puro medo. Sentiu aquele toque se afastando e então ouviu novamente aquela voz, vinda de um lugar mais distante. "Pensa no inferno" foi a frase dita antes do disparo. E então ouviu-se aquele som de pólvora explodindo no cartucho de uma arma de fogo. Seguido de silêncio. Não sentira impacto. Não sentia sangue escorrendo. Não havia dor. Portanto... E então uma lágrima. E outra lágrima. Seguidas de outras dezenas que se ligavam umas às outras formando um fluxo contínuo de compreensão e arrependimento e dor e sofrimento. "Dói, não dói?" E o som daquela voz misturou um pouco de alívio e medo ao sabor daquelas lágrimas. "Imagine, então, uma vida inteira assim. Mas sem entender o que acontecia. Até finalmente sentir a ficha cair e a compreensão chegar. E então sentir a incapacidade de se libertar. Mas tudo tem um limite e eu fui até onde pude, até ter que escolher entre implodir ou explodir. Eu quis te matar hoje, mas não suportaria viver com seu cadáver na minha consciência. Eu quis me matar hoje, mas isso não resolveria meu problema. Por isso, antes que chegasse a esse extremo, eu resolvi me libertar. E por isso, eu estou indo embora." Sentiu as cordas que lhe prendiam os braços se afrouxarem. E, quando se virou, só teve tempo de ouvir um desejo de "Seja feliz" proferido por aquele anjo que se libertava do cativeiro.

Repaginando

"Preciso escrever..." repetia ele para seus próprios ouvidos, incessantemente. Há dias. Há muitos dias. Tantos dias que quase compunham anos. "Preciso escrever..." insistia ele, em frente à tela do computador com o cursor piscante do editor de texto. Estático, ele mais que o cursor, cujo único movimento era o piscar característico daquela ferramenta. Nada de muito preocupante, para pessoas em geral. Mas para um escritor, era um problema considerável. Quase dois anos. Há mais de metade desse tempo, a editora o pressionava por um novo best seller. E ele lá, tentando. Tentando. E tentando. Mas não conseguia. Faltava-lhe... Pois é, faltava-lhe tanto, que sequer sabia dizer o que lhe faltava. Mas sabia que faltava. E não encontrava. E sentava ali, diariamente, horas a fio, estaticamente, pulsando na mesma freqüência do cursor, produzindo tanto quanto uma abelha falecida. E então, preservando a rotina já estabelecida há tantos dias que compunham anos, levantou-se. "Espairecer e buscar inspiração" era o motivo que justificava para a própria consciência. Carteira de cigarros na mão e isqueiro no bolso. "Lá fora, o mundo é cheio e as idéias são vastas, quem sabe é hoje..." pedia ele, sabe-se lá a quem.

E, naquele dia, nem mesmo precisou ir longe. Logo ao sair do portão de sua solitária moradia, ainda acostumando-se à luz intensa daquele sol escaldante, a mão esquerda ascendia o filtro do cigarro até a boca enquanto a direita trazia o isqueiro. Sem saber uma causa ou razão que pudesse explicar o porquê, olhou naquela direção e viu. O polegar estacou em uma mão imobilizada a meio caminho entre o bolso e os lábios que prenderam o cigarro que escapou dos dedos. Estático, plenamente. Nem mesmo o pulsar do cursor o mobilizava. Mas, dessa vez, não havia apatia ou acinesia. Só o que havia era aquela visão. Cabelos longos e soltos. Não eram tão volumosos, mas desciam tal e qual a corredeira mansa de um riacho em paz. Lábios pequenos e intensos e olhos vivos e brilhantes. Cativantes. Uma simetria que beirava o fascinante e ultrapassava o maravilhoso quando os olhos percorriam todo aquele corpo em harmonia consigo mesmo. E então, ele viu. A si próprio. Aproximou-se dela com um discreto e quase inaudível "Com licença, tem fogo? Meu isqueiro acabou de acabar..." com uma expressão envernizada num sorriso tímido de quem se sente incomodado pelo incômodo que causa. "Desculpe, mas não fumo" foi a resposta, educada porém terminal. "Faz bem, fumar mata, dizem por aí... Mas não tem nem um fósforo de acender fogão? Preciso muito acender esse cigarro agora..." foi a resposta dada por uma face tão polida que brilhava aquela timidez meiga, sedutora e calculada. "Um momento, vou ver com a minha vó" replicou um olhar antes frio porém agora curioso. Foi e voltou em poucos minutos com uma caixa de poucos fósforos desculpando-se "Só tinha os de acender incenso, pode ser?" "Claro... Muito obrigado" foi o retorno de um rosto aliviado. "Você está bem?" perguntou ela, com sincero interesse. "Estou sim... Apenas um pequeno problema que tem me incomodado um pouco, mas espero resolver logo." "E eu posso ajudar em algo?" "Já está ajudando, na verdade. Eu só precisava de um motivo pra puxar assunto e meu problema seria você entrar pra pegar os fósforos e não voltar..." respondeu um sorriso de verniz lixado e honesta expressão amadeirada. E ela, sorrindo um sorriso de 'eu sabia', pede "Autografa meu livro?" "Como?" "Autografa meu livro? Você é aquele escritor, não é? Tá um pouco mais novo na foto, com todo respeito, mas é você, né?" Um suspiro e uma expressão de 'não é bem assim' e ele diz "Se quiser, eu autografo, mas a única coisa que eu escrevo são listas de supermercado e folhas de cheque sem fundo. Mas, pra um rosto tão bonito e angelical, fica difícil recusar um pedido desses." E ela, agora com uma vermelhidão crescente e ascendente a aquecer-lhe todo o rosto, pergunta "Mas não é você?" "Adoraria, mas não... Tenho que admitir que somos bem parecidos, e você não é a primeira que faz essa confusão, mas infelizmente não sou eu. Não tenho capacidade pra escrever tão bem assim..." respondeu ele como quem acredita em uma crença que começa a nascer em seu próprio pensamento. E, vendo-a esconder-se atrás do livro, rubra qual uma maçã madura, concluiu "Mas não se preocupe, não me incomodo. Gostaria de ser tão bom quanto ele, mas nem todos nascem com esse dom... Eu tenho outros, felizmente." "Sério? E quais são seus dons?" devolve ela, ainda hiperemiada acima do normal. "Não posso comentar em público e muito menos nesse horário... Se quiser, podemos ir pro meu quarto e eu te conto lá..." foi a resposta acompanhada de um sorriso de intenção pouco esclarecida. Uma expressão surpresa que tanto podia ser sincera quanto fingida respondeu "Que indecência! Fazendo uma proposta dessas pra uma moça de respeito no meio da rua!" E ele, com um sorriso agora debochado "Calma, anjo... Não quero ofender sua dignidade, mas não podemos falar de assassinatos em série em plena luz do dia, concorda?!" Uma gargalhada sonora, sincera. "É, tem razão... Aí fica meio arriscado. E, pelo visto, bom humor é outro desses dons, né?!" "O maior deles, talvez..." foi a resposta de um sorriso cativante recebida por um olhar cativado.

E, nesse momento, a mão direita devolveu o isqueiro no bolso e os dedos da esquerda pescaram o cigarro que ameaçava cair. Ainda via a projeção mental do seu próprio ser interagindo com aquela musa que sequer sabia quão inspiradora era. E, apesar de a verdadeira não ter acompanhado o deslocamento da criação onírica daquela mente divagante, aquele casal saiu dali em direção a 'outro lugar' para que pudessem 'se conhecer melhor', enquanto ele voltava para dentro de casa. Economizara um cigarro, mas usaria aquele cursor piscante como há muito não o fazia. Não acreditava em amor à primeira vista. Não acreditava em divindade. Não acreditava em muita coisa. Aliás, acreditava em nada. Mas não precisava acreditar. Nunca precisara. Desde sempre, fora um criador de crenças, e não um crédulo. E sabia que por isso era lido. E, mesmo sabendo que precisava repaginar-se, reinventar-se, renovar-se, não o fazia. Ao menos, não externamente. Estava sozinho. Ou melhor, era sozinho. Muito mais que um estado, aquela solidão era uma característica inerente, indissociável do seu ser. Por opção, pura e simples opção. Consciente, acredite se quiser. E, quando questionado se não sentia falta de viver uma vida, ele respondeu "Não, porque eu vivo várias vidas." E era assim que escrevia a própria história. Seu espírito era livre para viver quantas vidas quisesse. E seu corpo estaria sempre ali, pronto para transformá-las em sucessos literários.

Era só um elefante...

"Amor, acho que escutei um barulho lá fora" disse ela, com olhos semicerrados. "É só impressão querida, pode voltar a dormir" respondeu ele, sonolento. "Mas amor, eu tenho medo... e se for um ladrão?" "Se for, ele é que tá lascado. Nós moramos no bairro mais seguro da cidade, temos alarmes nas portas e janelas e uma dúzia de câmeras de vídeo. Pode dormir sossegada." "Mas amor..." "Grunfglorbhsfff" grunhiu o companheiro, enquanto se levantava. Barulhos e sons, botões, portas, fechaduras, silêncio. Poucos minutos depois, ele volta "Era só um elefante violeta, meu anjo. Pode voltar a dormir. Vou lá fora fumar um cigarro pra aproveitar que levantei e já volto" disse abrindo a gaveta e retirando algo de dentro. "Traz um copo d'água na volta..." "Algo mais?" "...com um pouco de groselha..." "E...?" "...umas gotinhas de limão..." "Tá bom... Sempre assim, né?! Tudo que você me pede sorrindo, eu faço chorando. Há onze anos." "Doze, você sempre erra!" "Onze, meu amor. No primeiro, eu fazia sorrindo..." Dois sorrisos, carinhosos, um dele e outro dela. Doze anos. Praticamente o tempo de uma vida. Doze anos de partilha e companheirismo. Sempre o mesmo bom humor, sempre a mesma fragilidade. No começo, era tudo surpreendente. Por começo, entenda como dois anos, talvez três. Depois, uma certa rotina foi criada, mas as surpresas esporádicas sempre reavivam o interesse e a curiosidade, de ambos os lados. Ambos achavam incrível o fato de, mesmo após tanto tempo, ainda encontrarem novidades no outro. E ambos também sabiam que ainda havia muito a ser revelado, embora não soubessem se um dia o fariam.

Doze anos. Era o tempo que ela escondia aquele segredo dele. E muitos anos antes já carregava aquele sigilo. Por fora, funcionária do alto escalão de um ministério. Cargo de confiança. Muita confiança. Chegava a passar quase vinte dias em atividade contínua, viajando. Seguidos de alguns dias em casa, de folga relativa, apenas preenchendo formulários e relatórios. Geralmente uma semana, às vezes um pouco mais. Raramente, bem mais. Na realidade, a coisa era um tanto quanto diferente. Quando ele se levantou e saiu pela porta do quarto, um movimento rápido de uma mão ágil trouxe uma pequena pistola calibre vinte e dois do fundo falso da gaveta do criado mudo até embaixo do travesseiro. Tanta fragilidade tinha dois motivos. O primeiro, óbvio, era sentir-se cuidada, afinal de contas, ela era uma mulher! O segundo, sigiloso, era dispersar a atenção. Assim, ficava quase impossível desconfiar do trabalho de infiltração e espionagem que executava. Trabalhava para o governo, sim, mas sua função era outra. Especialista em contra-espionagem. A melhor. O crachá daquele ministério era a camuflagem perfeita, dando-lhe status de 'auditora' para penetrar qualquer esfera do governo em qualquer local do país. Tanto medo, na verdade, era apenas a cautela necessária a quem precisa sobreviver. Não temia ataques, saberia revidá-los, pois fora treinada para tal. Mas, ainda assim, preferia a cautela naqueles espaço onde vivia sua fantasia. Ou sua realidade, já não sabia mais dizer. Cada vez que se via em um mundo, o outro parecia apenas uma fantasia, um sonho distante. Era nisso que pensava enquanto ele saía com o cigarro na mão. De lá, a marca da aliança no quarto dedo esquerdo lhe dava segurança dessa verdade. De cá, a pistola no criado mudo lhe assombrava com a outra verdade. Do mesmo fundo falso, puxou o monitor portátil que só ela sabia existir. E observava seu protetor doméstico pelas câmeras de segurança. Adorava seu bom humor e seu riso fácil. Válvulas de escape de uma vida estressante, dizia ele. Via-o na calçada, falando sozinho, gesticulando energicamente como se falasse com alguém fora do vídeo. Ela o via fazer isso com certa freqüência, e, quando enfim teve coragem de questioná-lo, "Sou eu gritando com funcionários imaginários, pra não fazer isso na empresa" foi a resposta ouvida. Coitado. Tão estressado, por tão pouco. Se ao menos ela pudesse compartilhar um pouco do seu mundo com ele. Se ao menos ele imaginasse a realidade surreal que ela vivia. Às vezes, sentia-se a personagem de um filme. Mas sabia que era tudo verdade. E sonhava com o dia em que ele descobriria tudo, meio por acidente. Aí, enfim poderia desabafar e compartilhar. Mas sabia que era um sonho, apenas. Mas um dia, quem sabe, teria coragem de revelar a surpresa máxima que ela levava. Um dia, quem sabe...

Doze anos. Era o tempo que ele escondia aquele segredo dela. E uma vida inteira antes já carregava aquele sigilo. Por fora, um grande executivo da indústria alimentícia. Dono de toda uma cadeia produtiva poderosíssima, herdada de seu pai e gerida ao lado de seu irmão. Ele cuidava dos negócios na cidade, enquanto o outro geria os investimentos no campo. Trabalho estressante. Muito estressante. Piadas e gracejos constantes eram uma forma de desabafo e alívio. Uma forma de dizer a verdade sem que os outros suspeitassem. Tudo começara antes mesmo de seu nascimento, quando seu pai herdou aquele maldito guarda-roupa de um parente europeu tão distante que sequer tinha o mesmo tipo sanguíneo. A empresa de gêneros alimentícios era real, uma excelente camuflagem para o verdadeiro trabalho executado, pela enésima geração consecutiva daquela família. Aquele país supostamente imaginário demandava uma atenção verdadeira demais. "Dizem que os elefantes nunca esquecem, então você deve ser uma anta, seu paquiderme inútil!" vociferava ele, contendo o volume de sua voz para que ela não ouvisse. E o pobre elefante, de violeta se tornava quase vermelho, de tanta vergonha e medo. Abaixava a cabeça e encolhia a tromba, e quando ensaiou uma resposta excusa e tímida, foi interrompido "Olha," dizia ele, entre irritado e compassivo, "eu sei que não é fácil pra vocês, mas eu preciso da colaboração de todo mundo pra fazer isso dar certo! Já pensou se descobrem você aqui? É zoológico na certa! Eu já cansei de repetir, quando o carro vermelho estiver na garagem, não é pra se aproximar! Significa que minha esposa está em casa." Pausa. Precisava de fôlego e de algumas tragadas. E o paquiderme, ainda acuado, sabiamente optou pelo silêncio. "Eu não tenho como te colocar em casa, não hoje. Ela chegou ontem e ainda não tem data pra viajar de novo. Você lembra onde é a fazenda?" E, vendo o pobre animal se encolher até quase o tamanho de uma formiga, explodiu de novo "Mas puta que pariu, tem certeza que você é um elefante? Como você lembra de comer todo dia? Presta bem atenção, vou explicar de novo. Passa o muro do condomínio, aqui atrás de casa, vira à direita e segue a estrada até a bifurcação. Depois segue à esquerda, tá me ouvindo?! Esquerda! E vai até o fim que a estrada termina na fazenda. Eu tô sem tinta vermelha pra te esconder na plantação de tomate, mas, por sorte, os figos tão maduros, então você se esconde no meio do pomar de figos, entendeu? E lembra de ir pelo lado de cá, que é onde não tem câmera. E fala praquele macaco imbecil que eu sei que ele tá aqui, não adianta tentar se esconder. Leva ele junto e fala praquele banana que se ele atacar meus maracujás de novo, eu corto fora as bolas dele! Amanhã eu arrumo uma desculpa e vou até lá terminar de resolver isso." E observava aquela imensa massa arroxeada se afastar enquanto terminava de fumar seu cigarro. Já dentro da cozinha, enquanto preparava a groselha, pensava no quanto gostaria de poder compartilhar aquela realidade com sua amada. Via-a em seu mundo ministerial, burocrático e monótono, e tinha medo de qual seria sua reação se um dia ela descobrisse. Mas, ao mesmo tempo, torcia para que ela descobrisse, meio por acidente, pois daí seria obrigado a revelar aquela verdade. "Uma verdade cada vez mais difícil de esconder" sussurrou para si mesmo, enquanto se encaminhava para o quarto. Abrindo a porta do quarto, ouviu a gaveta do criado mudo se fechando. "Espantou o elefante?" perguntou ela. "Levou um esporro tão grande que de roxo saiu branco, coitado." E, enquanto a abraçava, já deitado novamente, pensava no quanto a amava. E, pela primeira vez em doze anos, pensava no quanto desejava que ela viajasse logo. Acima de tudo, queria tê-la por perto. Mas, infelizmente, com ela por perto, seria difícil dar um destino àquele atum escondido na caixa d'água sem levantar suspeitas...

Onipresença

"Doutor, ele vai parar!" disse ela. "E o que você espera que eu faça?" retrucou ele. "O seu trabalho." Curta e grossa. Sempre fora assim, desde pequenos. Quatro anos de diferença. E, ainda assim, as primeiras palavras dela foram ordens para o irmão. E assim foi uma vida inteira. Ela mandando e ele reclamando. Às vezes, ele obedecia. Às vezes, ela cedia. Quem olhava de fora, via dois irmãos em constante conflito. Mas, de dentro, ambos conheciam bem aquele equilíbrio que funcionava entre eles.

Compreendiam-se como só duas almas gêmeas poderiam se entender. E engana-se quem pensa que almas gêmeas são apenas apaixonados. Almas gêmeas são aquelas que se complementam, independente do relacionamento. E aqueles dois se completavam de uma forma curiosa. Ela era a iniciativa, a energia, a fagulha. Ele era a execução, o movimento, a combustão. E, juntos, eram a plenitude de uma grande obra. Quando agiam juntos, era um espetáculo belíssimo de se ver. Bailavam numa sincronia incrível. Deslocavam-se em passos coreografados plenos e perfeitos. De uma forma tão natural que era assombrosa.

Talvez por isso, talvez por outro motivo desconhecido, singraram caminhos diferentes em um mesmo rumo. Ele, médico. Ela, enfermeira. Alguma estranha coincidência do universo, se é que elas existem, fez com que se graduassem juntos. E ela, contratada do hospital onde ele fora admitido como residente. E, numa repetição de sua infância, amadureceram juntos novamente. Profissionalmente. No começo, engraçado do ponto de vista do observador externo. Mas, aos poucos, começaram a entender aquela estranha dança que, só agora, tantos anos depois, fazia sentido àquele que assistia. Pouco a pouco, conquistaram respeito e espaço na instituição. E os novatos que riam da enfermeira mandona e do médico submisso eram rapidamente repreendidos pelos mais antigos. Afinal, quatro braços e dois cérebros compunham uma unidade quase onipresente. Tal e qual um anjo que encarna em dois corpos.

Foi tudo um mal entendido...

"Então é isso, foi tudo um mal entendido..." disse ela. E sorriu. Uma doce e carinhosa ironia, ali, no meio daqueles lençóis flanelados, simples e rústicos, porém quentes e aconchegantes como nunca experimentara antes. Não entendia. Ou melhor, entendia, mas ainda não aceitava. As cores eram mais coloridas. Os cheiros mais cheirosos. Os toques mais intensos e sons mais melodiosos. Era tudo tão real que nem mesmo parecia realidade. Era tudo tão... vibrante... claro... natural... Quase como se não pudesse ser diferente.

"É... acho que foi mesmo..." disse ele em outra doce e carinhosa ironia naqueles mesmos lençóis. Sorrindo. Aquele sorriso que há tempos não lhe saía do rosto, quase como uma paralisia de Bell que idiopaticamente acomete os incautos. Mas, apesar da incautela de sua parte, ele bem sabia que não havia idiopatia nenhuma naquele espasmo muscular, pelo contrário, era uma etiologia muito bem conhecida. Um mal entendido...

Tudo começara sabe-se lá quanto tempo atrás. É impossível contar passado e futuro quando apenas o presente existe. Mas independente de quando, ele lembrava das vestes azul-celeste que ela usava quando se viram uma primeira vez. Aquele mesmo tom de azul que serve de fundo para os anjos que habitam o Éden. Pelo menos, era assim que ele se lembrava. Ela bailava por aquele salão de poucas janelas, deslocando-se graciosa e precisamente, como se tivesse certeza do que fazia, tal e qual um pássaro que dança pelos céus. O mal entendido começou ali, quando ele não entendeu quem era ela. E continuou ali, quando ela não viu quem era ele. Era apenas mais um dentre tantos, num terno azul-marinho como os oceanos mais límpidos e profundos. A diferença era apenas um sorriso fácil e uma atitude espontânea, repleto de graciosidades e acrobacias, tal e qual um golfinho que rasga a superfície d'água. E tudo começou com um gracejo, uma inocência. "Precisa de alguma coisa?" perguntou ela. "Um pouco de atenção" respondeu ele, sorrindo. E ali estava destruído o gelo que os separava.

Mudaram-se os tons de azul. Variou-se para verde, branco e até mesmo cor-de-rosa. Sempre vestidos esvoaçantes e ternos de fino corte. Sempre naquele salão de poucas janelas, onde ela voava graciosamente e ele nadava acrobaticamente. O mal entendido continuou quando ela, inocentemente, aceitou um convite não tão inocente da parte dele. Mas foi um programa puro e simples, sem malícia e sem segundas intenções, apenas pelo prazer da presença. Mas uma presença que deixou as coisas ainda mais difíceis de se entender. Um misto de será? com um toque de que bom! e um leve aroma de vamos de novo?! E nenhum dos dois entendia...

"Ainda bem que entendi tudo errado, então..." foram palavras nunca ditas. Caladas em ambos os pensamentos que as formularam. Ele sorria. Ela não entendia. E ambos viviam. Intensa e naturalmente, como se cada dia respirado até o momento fosse apenas uma espera. E não se sabia como resolver aquele mal entendido. Não se buscava solução para aquele mal entendido. Ele, por si só, era o mal entendido mais bem acertado que se podia esperar. E visto que não há necessidade de cura quando não há males a serem resolvidos, só o que lhes resta é deixar o entendimento de lado e viver aquela realidade, tão surreal que até parecia verdade...

Porque há instintos...

Ela dormia. Profundamente. E ele ali, a observá-la. Acompanhava sua respiração, movimentos lentos e profundos, suaves. Inconscientemente, respirava no mesmo ritmo, enquanto desenhava aqueles traços finos, delicados e sutis em seu pensamento. Fixava em sua memória aquele rosto único, angelical, quasidivino. Seus olhos percorriam aquele corpo parcialmente coberto por uma manta e admirava aquelas curvas, tocando-as. Mentalmente. Não queria perturbar aquele sono quasiperfeito. Ocasionalmente, não resistia, e afastava aquela mecha de cabelo que insistia em cair sobre aquele rosto de feições artísticas. Um toque mais leve que um sopro de brisa no campo. E a observava, fixamente, continuamente. Quase que hipnotizado. Completamente delirante. E ali, cultuando aquela obra-prima divina, adormeceu, enfim.

Ela não dormia. Mantinha os olhos cerrados, mas estava desperta. Como se meditasse profundamente. Sua respiração, lenta e profunda, parecia elevar sua mente ao máximo da percepção. E todo seu corpo ia junto. Sabia que ele a observava. E gostava disso. Sentia todo seu corpo vibrando com o desejo que irradiava dele. Arrepiava-se quando sentia aquele dedo leve como uma pluma a tocar-lhe os cabelos. Quase era capaz de perceber aqueles olhos a percorrerem cada curva de seu corpo. Sentia e vibrava cada segundo como se fosse uma hora. Nunca antes uma noite fora tão surpreendente quanto aquela.

Oito horas da manhã. Do dia seguinte. Naquele aeroporto, um tanto quanto distante daquela cama, uma auxiliar de higiene lamenta sua árdua vida ao se deparar com toda aquela tinta vermelha misturada a mechas de cabelo desproporcionais, espalhando-se pelo banheiro feminino. Se chegasse apenas alguns minutos antes, veria uma ruiva desconhecida e irreconhecível deixando o recinto. Quase irreconhecível, na verdade. Pois quem olhasse em seus olhos a reconheceria imediatamente. Viúva negra era o apelido designado pela mídia declaradamente sensacionalista e também adotado pela mídia discretamente sensacionalista. Doze vítimas, até o momento. Isso é, doze vítimas atribuídas a ela, mas somente a própria sabia o real número de homens que entregaram suas vidas em seus braços. Literalmente. Em comum o fato de que todos partiram sorrindo. Era assim. Sentia nojo dos homens e seus sentimentos e atos carnais e superficiais. Procurava aquele que fosse diferente e, aqueles que não o eram, bem... não eram merecedores de tê-la como troféu. Agora, ainda estava confusa. Não entendia. O último, não fora igual. Mas também não sabia dizer se fora diferente. E, enquanto pensava e tentava entender, sorriu. Por baixo dos grandes óculos escuros, viu o próximo candidato a observá-la. E ali, naquele portão de embarque, enquanto ainda tentava entender o que era incapaz de explicar, observou o próximo candidato à diferença se aproximando, após receber aquele sorriso permissivo. E assim, tal e qual o caçador que se finge manso para atrair a caça, ela recebe aquele cortejo. Busca uma diferença, mas sabe que vai encontrar o mesmo. Somente aquele que não foi igual encontrou um espaço verdadeiro em seu pensamento. Diferente deste, que, após poucos minutos de conversa, já tem seu destino definido. Uma manchete, sensacionalista ou não. E ela lamenta. Sinceramente. Gostaria que fosse diferente. Mas, infelizmente, certos instintos são inevitáveis.

Dez horas. Da manhã daquele mesmo dia seguinte. Na sala que antecede a cama, entra a empregada. Garrafas de vinho e embalagens de chocolate. E um sorriso irônico. Já sabia que, naquela cama, encontraria uma jovem ex-donzela, seminua. Ou completamente nua. E, delicada porém definitivamente, era sua a tarefa do adeus. Gostava de seu patrão. Era bom e generoso para com ela. Não concordava com seu estilo de vida, mas não cabia a ela questionar a hierarquia superior. Dirige-se ao quarto, automaticamente, meditando e recolhendo o que encontra pelo caminho. E então, ao abrir a porta, pára, subitamente. Surpresa. Confusa. Numa caricaturesca cena onde seu queixo tocaria o chão se não estivesse preso por ligamentos. Quem dorme é o patrão. Numa cama obviamente desarrumada por dois corpos. Dorme, é apenas uma forma de descrever. Na verdade, ele parece... estático... mais que o normal. Parece... não respirar. Parece... Engasgo. Tosse. Respiração profunda. De ambos. Ele, despertanto. Ela, aliviada. Ele se vira e palpa a cama. Vazia. Ainda sente o perfume dela no travesseiro. Lamenta. Sinceramente. Infelizmente, alguns instintos são inevitáveis. Já tivera muitos corpos em sua cama, mas nunca o mesmo corpo por mais de uma noite. E ali, pela primeira vez, desejou novamente aquele corpo. Não pela carne, mas pelo conteúdo. Porque, felizmente, há sentimentos que superam até mesmo instintos inevitáveis. E aquele sentimento de plenitude, inédito, inexplicável, atingido somente com uma presença, sem corpo e sem contato, sem posse. Um toque de espírito, literalmente. Ansiava novamente por aquele toque, por aquela presença. Por aquele sentimento. Mas aquela entidade agora intangível se fora e, aos poucos, inconscientemente, ele permitia que o instinto reassumisse o controle. Longe dali, a dez mil pés de altitude, outro espírito se deixava dominar pelo instinto novamente. Mas levaria consigo para sempre aquele sentimento. Ele, no chão, nem mesmo imaginava que sua vida fora poupada ao dar àquela alma um sentimento de esperança. Esperança de que nem tudo era igual. Porque, ainda que existam instintos inevitáveis, há sentimentos que superam tudo.

Reviravolta

"...mas pode me chamar de reviravolta." Foi só o que ele entendeu. Abriu os olhos e levantou a cabeça. E não entendeu o que viu. Parecia uma silhueta de mulher, envolta em um manto quasibranco, com uma cor parecida com algodão cru, mas a suavidade e a delicadeza de um tecido élfico daqueles que só se imagina em histórias de fantasia. Mas não se viam feições. Não se viam detalhes. Era uma voz doce e encantadora, melodiosa, transmitia-lhe paz e segurança, mas não conseguia vislumbrar a boca de onde partia. Não conseguia ver os olhos que sabia estarem a observá-lo. Estava sentado em uma posição confortável e, desistindo de reconhecer aquela que se encontrava diante de seus olhos, desviou o olhar e buscou identificar o entorno. Foi então que se confundiu ainda mais. Não reconhecia aquele ambiente. Sequer havia algo para ser reconhecido. Não via móveis, nem paredes, nem pessoas. Não havia quadros ou pontos de referência. Havia apenas... árvores. Estranhamente, estava sentado em uma poltrona feita de árvores... Não de madeira cortada, mas de árvores, propriamente ditas. Identificou duas, e talvez uma terceira, e sentava-se confortavelmente sobre elas, todo o corpo apoiado, mais macia que qualquer colchão que já houvesse experimentado. Pareciam ter sido moldadas, torcidas, direcionadas para que assumissem aquela posição. Ergueu os olhos novamente e outra vez encarou aquela figura. Seus olhos estavam se habituando lentamente àquele ambiente e, aos poucos, via com um pouco mais de clareza. Mas ainda não via feições.

"Quem é você?" perguntou ele, tentando entender melhor o que lhe acontecia. "Meu nome é vida, embora alguns me chamem caminho, oportunidade, experiência, destino e muitos outros nomes. Mas hoje, você pode me chamar de reviravolta." E enquanto ele ouvia, e não compreendia, embora aquela figura não pudesse ser mais clara, forçava a memória e buscava as lembranças mais recentes. Há um tempo que parecia uma semana atrás, lembrava-se da internação. Pneumonia. Tudo tem uma primeira vez, ainda que seja aos sessenta e muitos anos. Fora internado, a pedido da médica que o atendeu na urgência daquele centro de referência, em um quarto com outros três colegas enfermos. Dois dias depois, segundo era capaz de calcular, lembrava-se de uma sensação densa, calafrios e tremores, algumas coisas que supostamente não deveria ver, muita tosse, dor no peito, falta de ar. Fora então encaminhado a um tratamento mais especializado em outro andar, onde passaria a receber atendimentos mais freqüentes e uma atenção mais intensiva. Melhorou, e bastante, até onde era capaz de recordar. Não havia mais delírios e a tosse, ainda que persistente, agora era uma aliada a limpar-lhe os pulmões. Mas a última recordação que levava registrada era de uma dispnéia súbita e intensa, como nunca sentira antes. A vista meio turva, mal conseguindo movimentar os braços, e o ar que parecia não ser suficiente. Chamou uma enfermeira, que chamou um médico, que chamou toda a equipe. E então... e então... não sabia dizer. "Foi isso então, eu morri." afirmou ele, falhando em formular uma pergunta. "Não. Pelo menos, ainda não" foi a resposta, direta e surpreendente. "Você ainda não morreu e nem vai morrer tão cedo, se souber aceitar o que lhe for pedido e o que lhe for oferecido." E então ele a encarou novamente. Não havia uma expressão facial que pudesse interpretar, mas, de alguma forma, sabia que ela falava sério. Sabia que não era uma promessa vã. Sabia que deveria ouvir.

"Mas eu já estou velho, não há nada que se possa querer de mim ou que eu possa esperar do mundo. Já vi tudo que poderia ter visto, já experimentei tudo que poderia ter experimentado. Sei que estou longe de conhecer tudo que há no mundo, mas tudo que me era possível viver, eu vivi" argumentou ele, sensato como nunca fora antes. "O que é o tempo, senão um sistema rudimentar de calcular as voltas que seu planeta dá em torno de uma estrela? O que é o tempo, senão uma série de cálculos e hipóteses e suposições que perdem toda sua validade quando uma força maior muda o eixo do astro onde vive? O que é o tempo, senão uma forma de discriminação discreta e aceita?" Silêncio, foi a única resposta que encontrou. "O passado é uma lembrança, muitas vezes contaminada pela parcialidade da memória. O futuro é uma esperança, muitas vezes deturpada pela ânsia do desejo. Só o que existe é o presente, em todos os mundos e em todos os planos. E a duração máxima que o presente pode ter, é o agora. Nem mais, nem menos, apenas isso. E não está em suas mãos determinar quanto é agora. Nem mesmo nas minhas. É algo tão grande que eu sequer sou capaz de lhe explicar em palavras inteligíveis. E hoje, eu estou aqui para lhe dizer que o seu agora ainda existe, e que pode continuar existindo por um prazo indeterminado, se você aceitar a nova realidade que lhe trago."

Estava incomodado. Muito incomodado. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Não sabia onde estava. Não sabia quem era aquela ou o que ela esperava dele. Enquanto pensava nisso, ela se aproximou. Sentia-se assustado, mas, de alguma forma que não entendia e por algum motivo que não sabia, confiava que ela não lhe faria mal. "Veja" disse ela, enquanto aquelas mãos que mais pareciam fachos de luz tocavam sua testa. E então ele viu, diante de si, como se estivesse olhando uma teletela. Viu a si mesmo, deitado na segunda cama que ocupara no hospital. Que ainda ocupava, segundo a visão lhe informava. Sondas e agulhas introduzidas onde antes havia nada, soníferos injetados regularmente em suas veias, e seu corpo se comportando como se fosse recheado de estopa e serragem. Via as pessoas lhe moverem braços e pernas, via a si próprio sendo trazido de lá pra cá e de volta pra lá, deitado de lado, de frente, seus braços se movendo pelas mãos de outrem, até mesmo sua respiração parecia ter sido terceirizada. E não sentia nada disso. Não sentia mãos em sua pele, não sentia tubos em sua boca, não sentia nada do que via. E se antes não entendia, agora menos ainda. "Sou eu?" foram as duas únicas palavras que foi capaz de formular. "É o seu corpo, se é isso que quer dizer. Você está aqui, comigo" foi a resposta, tão impactante quanto um balde de gelo numa criança dormindo. "E o que isso tudo significa?" tomou coragem para perguntar. "Significa que sua vida, como você conhecia, está por um fio. Literalmente. Nada será como antes, tenha certeza disso. Se aceitar as condições que lhe proponho, voltará a assumir o controle do seu corpo, mas tudo estará mudado. Se não, daqui partirá em direção ao seu merecido lugar." "E quais são as condições?" perguntou, porque, agora, aquilo lhe interessava. Estava negociando e, isso, sabia fazer muito bem.

"Humildade" foi a resposta. "Como assim?" perguntou novamente, entendendo cada vez menos. "Foste um grande patriarca, no seu mundo. Agora, estou a lhe oferecer a oportunidade de ser um patriarca ainda maior, em ambos os mundos. Terá a oportunidade de crescer a si mesmo, fortalecendo sua humildade e sua resignação, ao mesmo tempo em que dará à sua família a oportunidade de crescer junto, ensinando-lhes o valor do amor e do trabalho." "Mas isso eu já fiz. Todos trabalham, todos nos amamos. Temos problemas, logicamente, toda família os tem, mas somos uma boa família, íntegra, honesta e unida. Como posso ensinar mais?" retrucou ele. "Exercitando a humildade. Sua família é realmente um exemplo, e exatamente por isso está recebendo a oportunidade de concluir seu crescimento nesse mundo com a experiência máxima que a Vontade Suprema pode lhos oferecer, o amor, o verdadeiro amor, a resignação, a aceitação, a doação" disse-lhe a vida. "E como serei capaz de proporcionar tudo isso a eles?" "Confiando. E aceitando." "Mas e" "Não existe mas", interrompeu-lhe bruscamente a entidade luminosa, impedindo que concluísse "isso não é uma barganha, isso é uma escolha. Confie e aceite, e retornará para concluir seu trabalho perante os seus. Caso contrário, será levado a outros caminhos para que possa atingir o mesmo fim." E então ele enfim entendeu. Não confiava, pelo menos não plenamente. Mas, por algum motivo, aceitou. Pelo apego, pelo vício, pela vontade de preservar aquela que chamava de vida, aceitou. E quando encarou novamente a reviravolta, não foi capaz de formular uma resposta. Via-a diante de si, mas agora estava em outro ambiente. Olhou em volta e reconheceu a unidade daquele hospital onde seu corpo recebia tratamento. "Ele acordou, que bom" foi o que ouviu, dessa vez vindo de uma boca que se movia e de um rosto que reconheceu como um dos profissionais daquela instituição. "Vamos tirar isso da sua boca agora" foi a frase seguinte. E então, com uma delicadeza brutal, algo foi arrancado de si. Sua garganta arranhou, seu estômago nauseou e seus olhos lacrimejaram, mas aquilo foi arrancado de si. Respirou fundo e sentiu novamente o ar fresco a lhe inflar o peito, ainda que com alguma dificuldade. Aquela que lhe fizera a proposta ainda estava ali, luminosa e sem feições, tal e qual a conhecera. Ainda não entendia tudo que acontecia, mas sabia que estava vivo, e então relaxou e dormiu.

Acordou quando sua família o tocou. Sua neta caçula e a mãe dela, a filha que ainda vivia nos arredores. Acariciaram-lhe os cabelos gentilmente, beijaram-lhe o rosto, entre lágrimas de ambos os três. Ele tentou falar, mas sua boca se moveu afônica. Forçou novamente, mas não foi capaz de formular sons coordenados. "Descanse, papai, o médico logo vai vir e vai explicar o que aconteceu" confortou-lhe a filha. Minutos depois, conforme prometido, o médico se aproxima do leito e aborda delicadamente a família em momento íntimo. "Olá. Como estão vendo, ele melhorou bastante. Conseguimos extubá-lo essa manhã e até agora, tudo corre bem. Ainda está muito fraco e vai precisar de algum tempo pra se recuperar, mas respira sem dificuldade e já não depende de tantos medicamentos. Aos poucos, vamos tirando ainda mais e logo ele vai para um quarto de enfermaria." "E o derrame?" pergunta a neta. "Bom, essa é parte mais delicada... Ainda não sabemos toda a extensão da lesão no cérebro, por isso é difícil dizer. Ele parece entender tudo que falamos, mas não consegue falar, ficou afásico, e ainda não sabemos exatamente como os movimentos de seu corpo foram afetados, temos que aguardar a evolução para que possamos afirmar com certeza. Com o tratamento adequado podemos recuperar muita coisa, mas é impossível dizer exatamente o que vai acontecer." E foi nessa hora que ele parou de ouvir. Chorava, silenciosa e discretamente. Olhou para o alto, como quem pede socorro. Não era isso que desejava, não era essa sua vida. E enquanto buscava entender o que acontecera, percebeu que a reviravolta ainda estava ali, a observá-lo. E então, ouviu sua voz uma última vez "Humildade e resignação, foi o que você escolheu aprender. Confie naqueles que ama, e permita-lhes que aprendam o valor do amor, da doação e do trabalho. Confie naquele que me enviou", enquanto sua imagem se tornava cada vez mais sutil até desaparecer por completo.

Telefonopatia

"Você é um menino de luz", disse-lhe o avô octagenário. E aquela criança de apenas poucos anos ficou a encará-lo, tentando entender o que aquilo significava. "Como assim, vovô? O que é ser um menino de luz?" E o velho homem sorriu. Sabia que ainda era cedo. Sabia que ele não entenderia plentamente aquilo que iria ouvir. Sabia que ele sequer lembraria de tudo que lhe seria dito. Mas, acima de tudo, sabia que seu tempo era pouco e que deveria fazer o possível por aquela criança.

"Significa que você tem um dom, uma coisa que te torna especial" foi a resposta mais simples que conseguiu formular. "Quer dizer que eu sou melhor que os outros?" E o avô riu-se ao observar a expressão de interrogação e exclamação do pequeno. "Eu não quero ser melhor que ninguém, vovô. Outro dia, lá na escola, ouvi um amigo contando que o irmão dele apanhou de outro menino só porque tirou uma nota boa. Não quero apanhar!" E a risada evoluiu para uma gostosa gargalhada, daquelas que só a ingenuidade de uma criança é capaz de provocar naqueles que já se esqueceram da simplicidade do mundo. Mas aquele respeitável senhor se controlou ao ver a expressão do garoto começar a mudar. "Não, meu filho, você não vai ser melhor que ninguém, não se preocupe. Vai ser apenas... diferente, digamos. Você vai ver coisas que os outros não vêem", explicou. "Vou ver fantasmas, vovô?!" perguntou-lhe um par de olhos esbugalhados. "Não, querido, não é bem assim. Na verdade, você vai ser capaz de ver o coração das pessoas", retrucou o sábio idoso, contendo outro acesso de gargalhadas. E então, um sorriso de exclamação pergunta "Então eu vou ter visão de raio-x, igual super-herói?!" Sem conseguir se conter, começou a responder ainda rindo "Quase isso, pequeno. Você não vai ter visão de raio-x pra ver através das paredes, mas vai ter um jeito diferente de ver, vai entender as pessoas, sentir o que elas sentem e, às vezes, até ouvir seus pensamentos." Voltando à face de interrogação, a criança pergunta "Vou ter telefonopatia?"

"É mais ou menos isso, meu neto. É um pouco mais, na verdade, mas ainda é muito cedo pra você entender tudo. Mas você até já tem um pouco, quer ver? Olhe nos meus olhos e tente descobrir o que estou pensando." E então os dois extremos se encararam. E o pequeno, subitamente, parte em direção ao corredor e alcança aquele velho relógio e, ao abrir o fundo falso dentro da rara peça, exclama inocentemente "Você mudou o esconderijo dos chocolates!" "Como você sabia que eu escondia aí?" perguntou-lhe o ancião, com um sorriso compreensivo nos lábios. E então, olhos tímidos e zigomas vermelhos, falando mais para si que para outrem, o pequeno diz "Eu... eu... sonhei que o senhor mostrava pra mim. Daí, quando acordei, vim ver se era verdade e tinha um monte de chocolate aqui... Todo dia eu como um, mas juro que é um só por dia!" Mudando de compreensão para satisfação, o avô questiona "E como você sabia que eu tinha mudado?" "Não sei... eu sabia, só isso" responde o neto com expressão confusa. E então, forçando uma seriedade que o momento não favorecia, o avô pergunta novamente "E você consegue descobrir onde eu escondi agora?" E o menino, encarando-o com seriedade, repentinamente ilumina o próprio rosto com um sorriso de satisfação e sai correndo em busca daquele segredo compartilhado no silêncio.

E o velho sorri, satisfeito. Satisfeito consigo mesmo. Mais ainda com seu pequeno sucessor. Conseguira cumprir seu primeiro objetivo, despertar uma curiosidade, um instinto, uma intuição. Oferecera ainda um pouco de esclarecimento que, aos poucos, amadureceria, juntamente com o portador daquela luz. Sentia-se feliz por poder orientar esse potencial em direção ao caminho que vira em seus sonhos. Sentia-se feliz por poder compartilhar aquele dom com alguém que lhe era tão querido. Sabia que seu tempo era pouco, mas agora tinha certeza que era também suficiente. Suficiente para ensinar àquela luz que seu caminho era o amor. Suficiente para evitar que aquele iluminado cometesse os erros que ele próprio cometera, permitindo-lhe procurar novos erros. E então, levantou-se e dirigiu-se à porta de saída. Precisava comprar alguns livros que lhes seriam úteis. E mais chocolate também...

O sapo

Era uma vez um sapo. Um sapo como qualquer outro sapo. Desses ordinários que encontramos por aí, cheio de verrugas, verde e gosmento. Mas, embora comum, este sapo era diferente dos outros. Tinha algo que o tornava único, especial. Era um sapo atropelado. Mas até mesmo para um sapo atropelado, ele fugia do normal. Não era um sapo esborrachado, completamente destituído de forma por um pneu de carro. Fora atropelado por uma bicicleta. Ou melhor, por uma pequena bicicleta. Mais especificamente, por uma carruagem, de uma pequena cinderela, que aparentava seis ou sete anos de idade e corria por ali, naquele momento, passeando no sítio de sua família. Era um princesa e, no momento em que atropelara o sapo, fugia apressada de um baile antes que sua carruagem virasse abóbora novamente. Até sentir uma lombada sob as rodas de sua bicicleta. Quase caiu e não entendeu nada, pois passara ali havia poucos minutos, a caminho do baile, e não havia lombada alguma. Um breve pausa na fantasia e a pequena menina volta para investigar. E, retomando a fantasia, deixa cinderela partir e fica a fada madrinha. Tomando por vara de condão o graveto mais retilíneo ao alcance da mão, toca o sapo uma. Duas. Três vezes. Na quarta, ele salta antes que a vara o toque, deixando pra trás um rastro de pó de fada. E antes que pudesse comemorar, uma mão a traz de volta à realidade. Pela orelha. Pobre criança, é uma mãe preocupada, apenas, que se esforça em ser boa, segundo seu próprio conceito. Inconcebível sua pequena menina brincando com um sapo morto no meio de uma estrada de terra. Bicicleta em uma mão, punho da menina na outra, e a jovem senhora segue de volta em direção à casa. Desejosa de continuar a fantasia iniciada, porém mais desejosa ainda de não levar uma boa medida sócio-educativa, a ex-fada segue conduzida. Antes, porém, olha novamente em direção à lombada, e vê um sapo morto, com uma marca de pneu de cerca de cinco centímetros de largura dividindo-o ao meio. Exatamente ao meio. Ao seu lado, um rastro de pó de fada que segue em direção à mata.

"Minha filha que perigo. Você podia ficar doente. Onde já se viu menina ficar brincando com sapo morto. Não, não tem discussão. Já pro seu quarto e fique lá até amanhã. E vai ficar até depois de amanhã sem a bicicleta. Um perigo, sair andando sozinha. E se fosse uma cobra?!" E a pobre criança se retira, escutando sem reagir, ainda tentando entender um sapo morto e um rastro de pó de fada. E, no castigo, só lhe resta dormir. E sonhar. Estranhamente, com um sapo. Parecidíssimo com aquele atropelado, mas diferente. Um tanto quanto...humano, talvez. No mínimo, bípede. E falante. Muito falante. E galante também, como todo sapo há de ser sob a carapuça de nojeira que o reveste. Aguarda a menina sentado sobre uma pedra, perna direita cruzada sobre a esquerda e um chapéu panamá em uma das mãos. Ou patas, não sei explicar. É um tanto quanto confuso. Ao vê-la, uma reverência e um chapéu que quase toca o chão, e um sorriso digno de sapo. Estranhamente, assim como não tivera nojo da carcaça grotesca e sem vida, sente-se atraída por essa bela entidade humanóide e corre em sua direção, recebida afetuosamente por um abraço caloroso. Uma vez separados, o sapo começa falando. Agradece o favor que lhe foi prestado. No momento em que o atingira, fugia de uma cobra caçadora. Aguardava-lhe uma morte lenta e sofrida. Dolorosa. Não que a cobra fosse má, mas era necessário e ele sabia disso. Mesmo assim, fugia, pois isso também era necessário e a cobra também o sabia. E ela, inocente e inconsciente, oferecera-lhe uma oportunidade de libertação. "Mas eu te matei", retruca ela. "Matou sim, mas libertou também, acima de tudo. Saiba que sequer senti dor, tão rápido foi. Uma leve sonolência e, estranhamente, de repente sentia-me leve e brilhante e saí a saltitar. Não via mais a cobra, imagino que sua presença a tenha afugentado. E estranhamente, tive vontade de voltar para lhe agradecer, e digo estranhamente, porque até então nunca tinho tido vontade. Apenas supria necessidades. E foi então que entendi." E então, ele explicou.

Levou a menina a passear. Mostrava-lhe um mundo...estranho...diferente. As cores vibravam e cantavam. Os animais falavam e gesticulavam. As árvores bailavam. E os poucos homens presentes harmonizavam. E o galante animal explanava que aquele era o paraíso. Um deles. Ali, onde se encontrava, podia ser feliz e se dedicar às suas composições coaxantes. Podia até mesmo executá-las sem ser importunado. E tinha oportunidade de transmiti-las aos seus amigos sapos que ainda eram verruguentos, embora nem sempre conseguisse fazê-lo com a fidelidade que desejava. E a harmonia reinava num ambiente de diversidade e celebração. Explicou-lhe, também, que fora seu toque mágico que o trouxera de volta à vida. A esta vida. Mais que seu toque, fora sua fé e sua imaginação, sua imagem em ação, sua vontade de dar vida que permitira que um pobre gosmento e verde anfíbio se levantasse como um imponente e nobre bípede coaxante. E então, começou a lhe explicar o poder das imagens ativas. O poder da imaginação. O poder da criação. Disse-lhe que cada ser daquele pequeno paraíso fora criado por uma mente. Alguns dependiam de terceiros, outros eram criadores de si próprios, verdadeiros avatares do mundo real enviados para um mundo ainda mais real. E explicou ainda sobre a vida e a morte. Sobre o tempo de nascer e retornar. Sobre a criação e a destruição. Sobre a vida que existia acima da vida. E então ela bailou. Cantou. Compôs. Viveu. Entendeu. Criou. Conheceu. E assim foi até que começou a se sentir cansada. Recostada em uma árvore que lhe acariciava os cabelos, fechou os olhos e cochilou brevemente.

Abriu-os novamente quando o sol aqueceu seus pés. Algum tempo até se acostumar à luz e então reconheceu-se dentro do quarto que lhe era designado naquela casa de retiro familiar. Sentou-se na cama, sorridente, um sorriso amplo prestes a se desfazer, quando começasse a perceber que sonhara e fantasiara. Mas antes que o sorriso começasse a esmorecer, um rastro brilhante chamou sua atenção. Pó de fada. Um rastro que levava o pé da cama até a janela. No chão, onde começava o rastro, um chapéu panamá. Na janela, um graveto. O mais retilíneo ao alcance da mão. E o sorriso, longe de se apagar, inflamou como uma estrela que nasce. Digno de um sapo. Tomando o chapéu em uma mão e a vara mágica em outra, desceu escada abaixo. E uma mãe, que, juro, fazia o possível para ser a melhor, se esforçava por manter uma postura firme e ensaiava um não disciplinador o suficiente para manter a privação da bicicleta, ficou sem entender quando uma menina sorridente passou por ela correndo.

A menina tudo tocava. E onde seu graveto quase retilíneo tocava nasciam flores. Sapos gosmentos. Sapos bailantes. Cães uivantes. Gatos larápios. Homens baixotes. Árvores centenárias. E quando, de tempos em tempos, voltava o rosto em direção ao caminho já percorrido, via claramente toda sua criação. Tão claramente quanto via sua mãe com uma interrogação maior que o sorriso de um sapo. E então, sorriu-lhe, e voltou ao seu trabalho de criação. Pouco lhe importava que nem todos pudessem ver seu mundo. Ele existia e não dependia de ninguém para isso, apenas dela. Aprendera que é assim que começam as grandes criações. E a mãe, pobre mãe, ficou a observar a filha se afastar, com um não pendurado na ponta da língua, quase caindo, inutilizado. Ficou pensando que deveria ter jogado fora aquele graveto esquisito, sem recordar a indelicadeza com que o retirara da mão da pequena na véspera. Por um breve momento, viu um pó brilhante e gracioso se desprender da ponta do graveto. Coçou os olhos e repetiu para si mesma "Pare de fantasiar, você já não é mais criança." E não viu mais pó algum. O que ficou sem entender, e que provavelmente não acreditaria quando ouvisse a explicação da filha, era onde raios ela arrumara aquele chapéu que levava na mão...

Lá fora, a chuva...

Lá fora, a chuva chora. Chora de saudade, de distância. Chora de dor e sofrimento. Chora de alegria e alívio, chora e comemora. E a chuva, lá fora, também molha. Molha o saudoso, o triste e o desesperado. Molha o alegre e o festivo. Molha e olha e chora por tudo e por todos. E o frio, esfria. Esfria os ânimos e as vontades. Esfria as almas e os corações. Esfria os ânimos e as dores. Esfria as vontades e os desejos, corpos e pensamentos. É como se o mundo todo fosse outro, como se tudo estivesse fora do lugar. Ou talvez é como se o mundo ainda fosse o mesmo, mas os olhos que o percebem mudaram, já não fossem mais os mesmos. Já não sei mais dizer. Só o que sei é que a chuva chora. E a chuva molha. E o frio esfria. Mas as coisas já não são como são. Algo renasce e recomeça e aqui dentro, o frio não chega. É uma chama que se acende e aquece o calor e ilumina a luz. E é uma chama fraca, tímida, frágil e delicada. E violeta. E violenta. Porque é uma chama. E o fogo que aquece é o fogo que destrói, são chamas que queimam e ardem e devastam. Mas é das cinzas que a fênix renasce. E o que é um novo mundo, senão uma pilha de tijolos sobre as ruínas do velho?!... Algo muda. Não sei exatamente como. Nem onde. Nem como. Mas muda. E as coisas nunca mais serão como foram. E as coisas nunca mais terão o que tiveram. E as pessoas nunca mais viverão como viveram. E o mundo não será mais o mesmo. Porque o mundo já não é mais o mesmo. Abra os olhos e veja. Abra o coração e saiba. O que os olhos não vêem o coração diz em alto e bom tom, grita e escancara e não esconde. Porque o que o coração sabe, os olhos demonstram. Impossível é esconder sua alma, sua essência, sua verdade. Olhos nos olhos trespassam qualquer muralha de carne e a verdadeira visão independe da retina. Duas almas que conversam entre si não podem se esconder. E a mudança do mundo vem da alma. Vem de dentro. Vem da chama. Dessa chama que nenhuma chuva molha, que nenhum frio esfria. Dessa chama que faz a chuva parar de chorar e transforma a depressão em ascensão. Dessa chama que queima, arde e destrói, deixando pra trás as cinzas que fertilizam o solo novo e a esperança da vida que recomeça. Algo muda aqui dentro. Algo já mudou aqui dentro. Feche os olhos e veja. Abra o coração e entenda. Deixe a chama chamar.

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Pois é, é isso mesmo. Nem sempre eu entendo o que escrevo, mas sempre sei que tem algo a ser entendido aí. Outro dia, um Anjo, desses que literalmente salvam vidas, me disse que uma das minhas postagens tinha "sido feita pra ela" e, embora eu dissesse que escrevera pra mim mesmo, ela ainda insistiu em dizer que não, que era pra ela. Bom, talvez tenha sido mesmo. Exatamente pra ela. E pra mim também. E pra quantas pessoas tenham vestido aquela carapuça. E tantas outras carapuças que tenho tricotado há alguns anos. O que pouca gente percebe é o tamanho da semelhança que há entre nós. Quando olhamos pro próprio umbigo, só o que vemos são nossas cracas e nossas sujeiras e nossas necessidades e só o que buscamos é nossa limpeza e nosso suprimento. Mas, se confiarmos na divindade que rege a existência do universo e levantarmos a cabeça apenas pra uma rápida olhada pro próximo, perceberemos que ele também olha o próprio umbigo. E, num esforço inútil, tenta limpar suas cracas e satisfazer suas necessidades. Que são exatamente as mesmas que nós enfrentamos. Levante a cabeça e abra os olhos. Olhe ao seu redor. Perceba seu irmão, logo ao lado. Entenderá que ele é você e você é ele e poderá facilmente se confundir com ele, até que aprenda a perceber a verdadeira individualidade e compreender a unicidade da existência e da personalidade e saiba se construir como entidade única. A vida em comunidade permite que nos vejamos refletidos nas outras pessoas, como se olhasse pra mim mesmo mas com outro rosto e outro corpo e até mesmo outro gênero. E então compreendemos a semelhança entre todos nós e, a partir daí, nos tornamos capazes de distinguir verdadeiramente a exclusividade e construir a própria existência. Chame isso de "encontrar a sua verdade". Ela está em você, mas não é olhando pra dentro que a encontrará. É olhando pra fora, para o próximo, buscando aprender o que é de todos, o que é dele e o que é meu, para então, lentamente, ser capaz de dar vazão a sua essência e deixar o divino agir através de suas mãos. Porque é isso que somos, ferramentas divinas buscando o bem próprio e o bem próximo. Buscando o bem de todos. Porque é o conjunto de individualidades que forma a humanidade, e a convivência em harmonia é o melhor meio de lutar contra cânceres que nascem quando a célula se revolta contra o corpo. Ame. A si mesmo, primeiro, ao próximo, depois. Mas ame, de verdade, ame como quem quer bem, como quem deseja felicidade, como quem constrói vida, como quem é livre e respeita a liberdade. Você pode não acreditar, mas o amor é tão simples quanto parece.

E assim como o ano começa depois do carnaval, o segundo semestre começa em agosto. É o mesmo ano, recomeçando. Muitas águas rolaram em março e em setembro chove, sim. E o ano recomeça...